A entrevista estava apalavrada desde agosto e tinha o Benfica-FC Porto da terceira jornada como pano de fundo. Adiamentos e cancelamentos em cima da hora trouxeram-nos até aqui, ao final de outubro. Mas para falar com o futebolista uruguaio mais titulado de sempre [26 troféus] a altura é sempre boa. 

Principalmente se esse futebolista, Cristian Rodríguez, tiver um passado riquíssimo - 110 jogos pelo Uruguai, dois Mundiais e quatro Copas América - e um discurso desassombrado, típico de quem não leva o futebol com a seriedade banal de um filisteu. 

Cristian, o Cebola, responde ao Maisfutebol com uma amabilidade que a postura guerreira em campo sempre nos escondeu. Uma conversa longa, onde não podia faltar a análise aos últimos meses no Dragão, o pior período do esquerdino nos azuis e brancos.
 

PARTE I: «Trocar o Benfica pelo FC Porto não foi traição, foi ato de coragem»

MF – Fez 120 jogos oficiais em quatro anos no FC Porto. Destaca algum?
CR – Destaco dois. O meu primeiro clássico na Luz com a camisola do FC Porto foi impressionante [1-1, 30 de agosto de 2008]. Atiraram-me cebolas, assobiaram-me sempre que tocava na bola e eu adorei. Sempre reagi bem aos insultos, a esses ambientes quentes. O outro acho que foi o Manchester United-FC Porto, 2-2 [7 de abril de 2009]. Marquei um golo logo no início em Old Trafford e isso não se esquece. Fizemos uma grande exibição.

MF – Quem eram os melhores amigos do Cristian aqui em Portugal?
CR – O Maxi Pereira, o Fucile, o Alvaro Pereira – que está agora aqui no meu rival, o Nacional. E não só uruguaios, claro. O Lucho era um enorme amigo, ainda há pouco tempo me visitou aqui no Uruguai.

MF – Trabalhou com três treinadores campeões: Jesualdo, Villas-Boas e Vítor Pereira. De quem gostou mais?
CR – São todos muito diferentes. Pela ligação criada, tenho de escolher o professor Jesualdo. É um senhor, um educador. Foi um dos melhores treinadores da minha carreira. Também vivi um grande ano com o André. Ganhámos tudo. Ele chegou muito humilde, ninguém o conhecia e fizemos um ano incrível. Com o Vítor foi mais difícil. Ele era adjunto, muito próximo de nós, entrava nas brincadeiras. Mudar o seu papel, passar a treinador, é difícil. Fomos campeões, mas fiz com ele o meu pior ano.

MF – Nessa época deixou de jogar em março e falou-se de um problema com João Moutinho num treino. É verdade?
CR – O que se passou com o Moutinho foi banal, nada de especial. Chateámo-nos num treino e no dia a seguir estava tudo bem. O problema não foi esse.

MF – Então?
CR – O problema é que o meu contrato acabava em junho [de 2012] e eu não quis renovar. Recebi muitas propostas boas e achei que era o momento de sair. O treinador deixou de me ter em conta, deixei de jogar a partir do momento em que no FC Porto perceberam que eu ia sair a custo zero. Eu queria sempre jogar e também por isso achei que tinha de sair. Adorei os quatro anos no FC Porto, mas tinha 27 anos e fazia sentido mudar nessa altura.  

Cristian contra Mascherano na Supertaça Europeia

MF – Arrepende-se dessa mudança para Madrid ou foi um bom movimento de carreira?
CR – Não me arrependo, cumpri tudo com o FC Porto e joguei noutro grande clube, o Atlético. Ganhei lá também títulos importantes. Fiz bem.

MF – Tem uma carreira carregada de troféus. O que lhe faltou ganhar?
CR – Nada, não posso dizer que me tenha faltado alguma coisa. Nasci numa família muito humilde, onde a comida não abundava, não tínhamos nada. E eu cumpri todos os meus sonhos: joguei no meu Peñarol, joguei em grandes equipas europeias, estive em Mundiais com o meu país. O que podia pedir mais?

MF – Esteve em balneários importantes. Qual foi o colega de equipa que mais o impressionou pela qualidade que tinha?
CR – Radamel Falcao. Principalmente pela forma como evoluiu. Quando chegou ao FC Porto era um avançado normal e básico. Tornou-se num dos melhores avançados da história do clube. Mudou completamente a capacidade técnica e a movimentação.  

MF – A atmosfera no balneário do FC Porto era boa?
CR – Sim, a ligação era fortíssima, também fora dos treinos e dos jogos. Celebrávamos aniversários, o Natal, o Ano Novo, o nascimento de algum filho, festejávamos tudo como se fossemos uma família. Principalmente nós, os sul-americanos, porque tínhamos a família longe.

MF – Quais são as melhores e as piores memórias da passagem pelo Porto?
CR – As piores… a água do mar era muito fria (risos). Vivia em frente à praia de Matosinhos e nunca consegui tomar lá um banho. O clima também era meio furioso. Chovia bastante, mas tudo era compensado pela cidade que é linda. E pelas pessoas. Nunca conheci pessoas tão simpáticas. Tive uma vez um problema com os adeptos à saída do estádio [após uma derrota 2-3 contra o Leixões] e no dia a seguir estava tudo ultrapassado e todos me cumprimentavam na rua. A cidade, as pessoas e o clube são as memórias boas.

MF – Qual é a origem da alcunha «Cebola»?
CR – O meu pai nasceu num pueblo pequenino e adorava cebolas, comia muitas. Passaram a chamá-lo assim. E eu, como filho, mantive a alcunha. No Uruguai é um costume manter a alcunha do pai.

MF – O futebol português sempre recebeu muitos uruguaios. Há algum jovem que aconselhasse sem problemas aos grandes clubes portugueses?
CR – Temos jogadores de grande qualidade. Gosto muito do Facundo Pellistri, um chico de 17 anos, aqui meu colega no Peñarol. Ainda está verdinho, mas tem uma velocidade incrível e é um diamante em bruto. Vai dar muito dinheiro ao Peñarol.

(artigo originalmente criado às 23h55 de 31/10/2019)