Vem aí um fim de semana de clássico, e que clássico: um FC Porto-Benfica que vale a liderança do campeonato e que vale também muito na corrida pelo título. Por isso nada melhor do que falar com quem esteve dos dois lados. Maniche, pois claro.

O médio que foi um dos melhores jogadores da sua geração recordou histórias antigas, falou do que os dois clubes significam para ele e contou porque decidiu ficar a morar no Porto após o final da carreira. Pelo caminho confessou que é apaixonado pelo FC Porto.

Antes de mais começava por lhe perguntar como estão a correr as vendas do livro?
Está a ser uma meia surpresa: nunca pensaríamos que ao fim de 21 dias tínhamos esgotado a segunda edição do livro. Neste momento vamos lançar a terceira edição, em Londres. Portanto o livro está a correr muito bem, o que me deixa muito orgulhoso.

Partilhar aquelas histórias desconhecidas foi algo natural para si?
Sim, senti que foi quase uma obrigação. São situações caricatas e curiosas, mas que as pessoas gostam, porque lhes permite conhecer como funciona um balneário. Umas são mais bonitas do que outras, mas acima de tudo quis retribuir aos adeptos todo o carinho que me deram.

De todos os episódios que conta no livro, que história escolheria como preferida?
Talvez a história do Mourinho, porque serve de exemplo para muitos jovens. Num jogo-treino com a equipa de juniores fiz uma entrada dura logo no primeiro minuto, sobre um miúdo, e o Mourinho colocou-me a correr de castigo em torno do campo. Eu praticamente não corri, andei mais do que corri. Conclusão: durante o tempo todo do treino dei duas voltas ao campo.

Isto nos tempos do Benfica, não é?
Exatamente, no Benfica. Bem, o Mourinho não me convocou para o jogo seguinte e à frente dos meus colegas perguntou-me se sabia por que tinha ficado de fora. Eu respondi que sim, que tinha sido por ter tido uma entrada dura sobre um colega. E ele: Não, não foi por isso, isso acontece em todos os treinos. Não foste convocado porque estás muito mal fisicamente. Em 45 minutos só deste duas voltas ao campo, portanto estás muito lento. Nos próximos três dias vais fazer treino específico para recuperar a forma física, a ver se és convocado para o próximo.

[risos]
É irónico e engraçado, mas serviu de ensinamento para o futuro: independentemente do estatuto que uma pessoa pode ter, tem de respeitar sempre o trabalho dos outros.

Há uma história que a mim me encanta que é a do Carlos Alberto...
[risos] O Carlos Alberto chegou com 19 anos ao Porto e não conhecia ninguém. Como ele já disse, eu ajudei-me muito nessa altura, ele andava sempre comigo. Um dia fui ao escritório do Jorge Mendes e levei-o. Estava lá o António Salvador de costas, ele não o conhecia, foi por detrás do Salvador e na brincadeira meteu-lhe as mãos nas partes baixas. «Conta até três e assobia, ou não te largo». O António Salvador estava tão vermelho que não conseguia nem contar até três nem assobiar. Foi o Jorge Mendes que acabou por dizer O que estás a fazer? Estás maluco? É o presidente do Braga, não faças isso. Ele tirou logo as mãos e pediu desculpa. Foi uma situação caricata e que só estando lá é que se percebe a dimensão da mesma.

O Carlos Alberto era um miúdo...
Era irreverente, sem maldade, mas muito brincalhão. Não tinha o intuito de atingir ninguém, aquilo foi só mesmo por brincadeira, porque pensava que era um funcionário da Gestifute.

Mas ia dizer que era um miúdo sem medo...
Sim, sem medo. Recordo-me perfeitamente que ele por vezes jogava a ponta de lança nos treinos, o Jorge Costa fartava-se de lhe dar porrada e ele não caía. O Mourinho até incentivava o Jorge Costa, dizia mais forte, mais forte, mas o Carlos Alberto não caía. Ele protegia muito bem a bola e o Jorge Costa irritava-se com isso.

Lembro-me sempre que quando foram jogar a Old Trafford, o Mourinho até o meteu a falar na sala de imprensa e utilizou isso mesmo. Disse aos jornalistas ingleses ah, e tal, vocês parecem-me estar todos muito nervosos, nós estamos super calmos, tranquilos, descontraídos e trouxe aqui o mais descontraído de todos...
É verdade, é verdade. O Carlos Alberto nem falava inglês, mas não tinha medo de enfrentar nada. Não tinha medo de estatutos, enfim, já era da personalidade dele. Era muito forte psicologicamente e muito brincalhão. O Mourinho aí juntou o útil ao agradável.

Vem aí um FC Porto-Benfica. Tem saudades destes jogos?
Claro que é um daqueles jogos que mais gostava de jogar. É um clássico, que mexe com muitas emoções dentro e fora do campo, é um jogo de concentração máxima e que é sempre preparado de forma especial. Estando agora da parte de fora e apercebendo-me da dimensão do conteúdo do jogo, ainda fico com mais saudades.

Vai ao estádio ver o jogo?
Vou, vou, vou.

E vai estar a torcer pelo FC Porto?
Sim, sem dúvida.

Sendo o Maniche um lisboeta de nascimento, ter ficado a viver no Porto significa que o norte do país o conquistou?
Temos de estar onde nos sentimos bem, onde nos sentimos respeitados, acarinhados e valorizados. Digamos que com a vinda para o Porto juntei o útil ao agradável: sou sócio do Sporting, mas sou também portista de coração e para além disso a minha mulher é do Porto. Apaixonei-me pelo Porto, e sobretudo pelo FC Porto.

Conhecendo os portuenses como conhece, é de esperar que o Benfica não vá ter um dia fácil no sábado, não é?
Acho que nem o Benfica nem o FC Porto vão ter um dia fácil. Vai ser um jogo equilibrado. São duas grandes equipas, que estão a passar um grande momento de forma. O Benfica vem de uma vitória por 4-0, está a apresentar uma dinâmica acentuada, o FC Porto conseguiu um excelente resultado frente ao Sp. Braga. Portanto não vai ser fácil para ninguém.

Este é um Benfica em que é inimaginável aparecer um relatório sobre o adversário com dez jogadores, não é?
[risos] Sem dúvida, é um Benfica muito mais organizado do que era o meu. Mais coeso e mais confiante. Mas também vai encontrar um FC Porto muito forte.

E como acha que os adeptos do Porto vão viver o clássico?
É uma semana de festa até ao jogo, porque o FC Porto e os jogadores transportam uma alegria para a vida deles que as famílias muitas vezes não têm durante o resto do ano.

Acha que há algum jogador no FC Porto ou no Benfica que possa fazer lembrar o Maniche a quem vir o jogo?
Tanto o FC Porto como o Benfica têm jogadores de muita qualidade. Estes jogos muitas vezes definem-se numa bola parada ou num raide individual. No caso do FC Porto, o Brahimi é o que sobressai mais e o que está mais perto de poder decidir. Na forma em que o João Félix está agora, acho que é o jogador de quem o Benfica depende mais.

Já falámos muito do FC Porto, e o Benfica que memórias lhe traz logo à cabeça?
A minha formação, que foi riquíssima. Nesta altura a única coisa memorável que guardo do Benfica é a minha formação. Conheci pessoas fantásticas, que me ensinaram a crescer, que me ensinaram a movimentar dentro de campo, para que quando chegasse à equipa principal pudesse fazer aquilo que o João Félix está a fazer hoje: a dar nas vistas pelas suas movimentações. Nota-se que tem escola e percebe-se perfeitamente de onde veio. Por isso o que trouxe mais do Benfica foi a minha formação. E, já agora, não posso esquecer o orgulho que foi ser capitão do Benfica com 21 ou 22 anos. Isso também é uma recordação que me deixa muito satisfeito.

Ser capitão também foi um prémio do Mourinho, depois de o ter colocado a correr à volta do campo...
Foi um prémio do Mourinho, numa situação um pouco ingrata. Aconteceu depois do Calado se recusar entrar em campo para a segunda parte de um jogo em que lhe estavam a chamar nomes feios. O Paulo Madeira e o Ronaldo não estavam no jogo, o Mourinho colocou-me então como capitão e nunca mais deixei de o ser até final da época.

Na sua formação não deixa de ser curioso também que, apesar de ser do Bairro da Boavista, que é Lisboa, ter saído de casa para ir para perto do Estádio da Luz...
Saí de casa com 16 anos. O Benfica deu-me uma casa para partilhar com o Edgar e o José Soares. Falaram com os meus pais, inicialmente a ideia não lhes agradou muito, não queriam que eu saísse de casa, mas o Benfica queria que saísse do bairro social e me preparasse para o futuro. Tinha receio que eu começasse a fumar ou me metesse nas drogas, mas a educação do meu pai nunca me permitiu isso. Também sou uma pessoa extremamente forte psicologicamente e não me deixo levar para essas coisas. Mas como costumo dizer, uma criança de um bairro social também pode ser boa pessoa e querer para ela um futuro ambicioso. Basta olhar para o futebol: 80 ou 85 por cento dos jogadores vêm de bairros sociais.

E o Maniche aceitou bem a saída de casa?
Não, não. Não foi fácil. Saí de casa e só voltava ao fim de semana para entregar a roupa para eles lavarem. Nessa altura sentia uma imensa nostalgia. Do meu bairro à casa onde vivia é muito perto, demora-se quinze minutos a pé, se calhar nem tanto. No entanto fiquei proibido de entrar no bairro, e admito que fazia sentido. O Benfica tinha-me tirado do bairro para ficar longe de ameaças e poder concentrar-me apenas no futebol.

O FC Porto por outro lado é só memórias felizes, não é?
Sim, no FC Porto ganhei tudo o que podia ganhar: títulos de campeão nacional, Taças de Portugal, Taça UEFA, Liga dos Campeões, Mundial de Clubes. Foi só alegrias. Senti-me como se tivesse crescido no Porto e no FC Porto. Fui recebido de braços abertos.

E o que é que o Porto tem de especial? Lembro-me que, para além do Maniche, também outros jogadores de Lisboa como Quaresma ou Costinha se apaixonaram pela cidade...
Eu encontrei um FC Porto muito organizado, muito acima de outros clubes. Depois fui para o Inter Milão e para o Chelsea e estavam a anos-luz do FC Porto em organização e em condições de trabalho. Depois no Porto respira-se vencer.

Mas em que aspetos é que isso se traduz?
Vamos a um restaurante e a pessoa diz amanhã é para ganhar, vamos passear à praia e há sempre um adepto que diz não te esqueças que amanhã tens que dar tudo. Isto vai-se enraizando numa pessoa. A cidade do Porto vive muito das vitórias do FC Porto. E depois, claro, há as pessoas: sempre muito calorosas e amigas. Por isso falo como falo desta grande cidade e deste grande clube.

Olhando para trás, o melhor Maniche esteve no Euro 2004 e no Mundial 2006?
Eu sempre fui uma pessoa discreta. Não gostava de dar entrevistas, escondia-me muito, enfim, estava focado exclusivamente em jogar futebol. Não era amigo de jornalistas como muitos jogadores o são. Isso por vezes ajuda a catapultar a carreira de um jogador. Eu ando há muitos anos no futebol e sei como as coisas se fazem. Nunca fui amigo de jornalistas, não por os jornalistas não serem amigos, mas porque não queria ser puxa-saco: odeio puxa-sacos.

E há jogadores que são puxa-saco?
Havia muitos colegas meus que eram muito puxa-saco e valorizaram-se à custa disso. Eu nunca fui essa pessoa. Mas a verdade é que eu devo estar no top-10 de jogadores portugueses com mais títulos, e títulos mais relevantes. Mas isso não foi valorizado. Se calhar se fosse jogador do Benfica, em vez de ser do FC Porto, também tinham dado mais ênfase à minha carreira. Mas é como digo, o mais importante é estar orgulhoso da minha carreira.

Mas o Maniche tem noção de que, talvez juntamente com o Deco, foi o topo de uma geração?
Sim, tenho noção disso. O Euro 2004 foi muito bom, o Mundial 2006 também foi bom, mas nada disso fazia sentido sem o que conquistei no FC Porto. Modéstia à parte, reconheço que fui dos melhores médios do meu tempo.

Se calhar faltou-lhe sair do FC Porto no final do Euro 2004...
Sim, acredito que sim. Tive clubes muito importantes interessados em mim nessa altura, mas o FC Porto optou por não me deixar sair. Nesse ano tinham saído o Deco, o Alenitchev, o Paulo Ferreira, o Ricardo Carvalho, enfim. Tive uma conversa com o presidente e ele disse-me que tinha de ficar em lista de espera, porque não podia desmanchar a equipa toda. Prometeu-me que sairia no ano a seguir e foi assim que aconteceu.

Mas o Dínamo de Moscovo também era curto...
Sim, eu sei isso. Depois do que fiz e do que ganhei, se calhar merecia um clube melhor. Mas não se pode ter tudo. Tenho, acima de tudo, de ser grato ao clube que me deu tudo, e o FC Porto apostou em mim numa altura extremamente difícil da minha carreira. Estava sem jogar e o FC Porto deu-me a mão. Depois optou pelo Dínamo porque era o clube que pagava mais e eu aceitei que era o melhor que havia a fazer.

(Artigo originalmente publicado às 23:54 de 28-02-2019)