A Alemanha saiu prematuramente e corada de vergonha do Euro 2000. Ao contrário do que é habitual, a Federação germânica olhou para dentro na hora de atribuir culpados e decidiu reformular em toda a linha o processo de formação.

Nem mesmo uma série de acasos felizes na Coreia e no Japão até ao jogo do Brasil, travaram os seus intentos. Os dados estavam lançados e em 2002, a Federação alemã arrancou em definitivo o «Programa de desenvolvimento de talentos» pela mão do então presidente Gerhard Mayer-Vorfelder. Um percurso que tinha um objetivo claro: tornar os germânicos na maior potência do futebol mundial.

Para isso, a DFB (Deutscher Fußball-Bund) implementou uma série de alterações estruturais transversal a federações, associações, clubes e à própria federação. E nem os treinadores foram deixados de parte.

O Maisfutebol conversou com Leonardo Galbes, treinador luso-brasileiro que se mudou durante o ano de 2020 para Leipzig e estudou pormenorizadamente a máquina montada pela Federação alemã enquanto estudava na universidade local.

«Inicialmente apresentaram-me a estrutura da Federação alemã, que se ramifica em cinco federações regionais. Como se fosse uma pirâmide. Por sua vez, essas federações dividem-se em escolas e associações. É uma forma de ter todo o território nacional incluído nas suas diretrizes. O foco é o desenvolvimento do jogador, do treinador e da personalidade do indivíduo praticante», começou por relatar.

Grosso modo, a Federação alemã divide os atletas por faixas etárias: dos seis aos 11 anos; dos 11 aos 14 anos; e dos 14 aos 23 anos, conforme explica o técnico com passagens pelo Red Bull Bragantino e pelo Al-Hilal.
 
«Dos seis aos 11 anos a preocupação é o conhecimento e o desenvolvimento da paixão pelo jogo, não só do futebol. Essa paixão vai ser aplicada em atividades de treino mais propícias ao desenvolvimento do lado cognitivo. Há uma preocupação para que as crianças tenham prazer no treino. É o projeto chamado FUNino. A ideia tem por base o jogo de três contra três, mas com regras específicas: não há guarda-redes, sempre que uma equipa marca ou sofre, há uma substituição. Esta fase ocorre em associações ou escolas. Mais tarde, iniciam-se as ações nos clubes», explicou.

As crianças que se destacam acabam por ingressar nos clubes por convite ou por iniciativa dos encarregados de educação. Mas há determinadas regras que são necessárias cumprir.

«Acontece o que acontece em todo o mundo: quem tem mais talento, acaba por ir para os clubes. Esse é o primeiro filtro de qualidade. No entanto, a DFB estabelece regras de mobilidade geográfica de forma a que a criança não acabe prejudicada em questões de estudo ou de ligações emocionais. Pode ingressar num clube que esteja dentro de um determinado limite da área de residência. Se quiser jogar num clube fora desse limite, a família também é obrigada a mudar-se», esclareceu.

 

Leonardo Galbes (ao centro) durante o ano em que esteve em Leipzig, a estudar o processo de formação do futebol alemão.


Cumprida a primeira fase de formação, os responsáveis alemães fazem pequenas alterações no processo de treino, mas mantêm o intuito de desenvolver a personalidade do indivíduo e o aspeto coordenativo.

«Quando se rompe a barreira dos 11 anos, o processo formativo é idêntico ao resto do mundo em termos de desenvolvimento dos jogadores. Vou dar um exemplo de um treino para facilitar a compreensão. No período de aquecimento, o foco é a capacidade coordenativa que norteia sempre trabalho, por isso, há uma preocupação pela reação, equilíbrio, entre outras coisas. De seguida, há exercícios de liberdade de confronto com situações de um contra um, dois contra dois ou três contra dois. Por último, temos um nível de associação mais próximo do jogo, com jogos de sete contra sete sem restrições», apontou.

Na última etapa de desenvolvimento, o treino é mais direcionado para o jogo.

«A DFB criou um documento chamado ‘O nosso caminho’. É, no fundo, a ideia de jogo do futebol alemão. Esse documento foi elaborado em conjunto com especialistas, ex-jogadores e membros dos clubes. A Federação explica o que espera do treinador, do jogador e das equipas alemãs. A Alemanha idealiza um jogo de posse e agressivo tanto defensiva como ofensivamente. Essas ideias ajudam e muito o processo de treino de um treinador. Esses conceitos vão estar aplicados numa equipa qualquer de sub-17», clarificou.

Leonardo Galbes frisou, ainda assim, que não há uma obrigatoriedade para seguir esse documento à risca.

«Nem todas as equipas jogam da mesma maneira, mas há um fio condutor. Não é obrigatório jogar da maneira que a Federação quer. Mas há esse documento do qual a Alemanha vai partir para selecionar jogadores. Como os treinadores têm o objetivo de formar jogadores para a seleção, essa linha vai ser seguida. Além disso, a criação do documento envolveu vários especialistas e qualquer treinador acredita nele. Essa é a maior ferramenta da DFB», sublinhou.

A Federação alemã é responsável pela formação dos treinadores, o que quer dizer que estes são moldados à imagem das ideias estabelecidas no documento ‘O nosso caminho’. É uma forma de a DFB estar representada em todo o território nacional - 357,386 km².

«Cada associação que pertence à Federação tem um carro que percorre a sua área de jurisdição para ver que tipo de treinos estão a ser aplicados e para divulgar novos métodos. É uma forma de disseminação de conceitos, de avaliação e de análise», acrescentou. 

Além das ideias de jogo, os germânicos fortaleceram o scouting e o treino individual. As duas estão como que umbicalmente ligadas, como refere Leonardo Galbes.

«O departamento de scouting da DFB serve para identificar os talentos que existem em casa. Ou seja, quais são os melhores jogadores, para começar um processo de seleção para as equipas nacionais. Quando há um grupo de jogador selecionáveis, eles são ainda mais desenvolvidos a pensar na seleção AA. O objetivo é só um e é claro: a Alemanha ser uma potência mundial», disse.

«A preocupação pelo treino individual nunca se perde. Os alemães são apaixonados por esse tipo de treino. A característica individual acaba por ser coletiva por questões culturais. Eles orgulham-se por desenvolver jogadores que jogam bem ao primeiro toque e que consegue receções orientadas, mas há uma coisa que não têm: drible. Preocupam-se com essa ‘incapacidade’. A maioria das equipas da Bundesliga usa jogadores estrangeiros ou alemães com origens fora da Alemanha no ataque. Há uma enorme preocupação nesse aspeto», destacou.
 

Miguel Moreira, luso-alemão, trabalhou três anos na formação do Borussia Dortmund.


O país segue uma ideia. Há um sentimento de pertença e de orgulho, ninguém se sente excluído. Pelo contrário. Todos se sentem parte do processo.

«O documento ‘O nosso caminho’ é uma ferramenta de identidade. Criou-se uma ideia que é aplicada e avaliada constantemente. Isso gera orgulho. Ganhar o Mundial de 2014 não estava planeado. Aconteceu demasiado cedo. Mesmo quando não ganharam, não houve ruído. O processo é mesmo assim», concluiu.

Se Leonardo Galbes estudou a transformação do futebol alemão, Miguel Moreira, treinador que esteve três anos no Borussia Dortmund, viveu-o por dentro.

«Todas as equipas profissionais têm de ter academias. Por exemplo, o Borussia Dortmund iniciou o século a treinar em terra batida e só construiu a academia em 2005. As academias de cada um dos clubes recebem uma classificação por parte da Federação alemã e conforme o nível da classificação, são atribuídos subsídios. É feita uma análise ao estado da academia, aos princípios aplicados nos treinos, enfim, a tudo o que se faz», frisou ao nosso jornal.

O luso-português, de 37 anos, corrobora a liberdade que os treinadores têm para não seguirem a ideia proposta pela Federação alemã.

«Existe a filosofia da seleção alemã, sim. A ideia da Federação é ensinada nos cursos de treinador. No entanto, cada clube têm os seus princípios e normalmente, tenta adaptá-los à ideia da DFB. Não há qualquer obrigatoriedade. A filosofia da Federação não é louca, pelo contrário, é boa», explicou.

O trabalho desenvolvido deu frutos e o protótipo do jogador alemão alterou-se por completo, aponta Miguel Moreira.

«Já se nota isso na seleção AA. Antigamente, dizia-se que os alemães eram máquinas e que tinham um futebol muito físico. Agora está tudo muito diferente. O nível técnico está muito elevado, há uma enorme atenção pela evolução desse aspeto», finalizou.