«Macacos», batalhas campais e água benta. Maradona, Pelé, Zico. Episódios épicos, nomes incontornáveis. A enorme rivalidade entre Argentina e Brasil, que esta noite se defrontam em Belo Horizonte, na qualificação da CONMEBOL para o Campeonato do Mundio, é mesmo isto: uma relação de ódio que, paradoxalmente, inscreveu alguns dos momentos mais apaixonantes no livro de memórias do futebol mundial.

Cento e dois anos. Cento e dois jogos. A coincidência dos números é mesmo isso, mera coincidência, mas o conflito entre o país das Pampas e a antiga colónia portuguesa é tudo menos fruto do acaso, remontando ao século XIX.

Para percebermos a origem de um confronto que é um clássico a nível futebolístico, a horas de ser acrescentado mais um capítulo a um vasto arquivo de duelos, é obrigatório alargar os horizontes além do panorama desportivo.

Embora esse seja o contexto que mais interessa para o caso, uma vez que é nesse âmbito que a rivalidade mais transparece atualmente, a génese do conflito tem razões históricas e geográficas e teve o principal impulso em 1825, numa altura em que ambos os países davam os primeiros passos de independência. A Argentina, recorde-se, declarou a sua autonomia da Espanha em 1818, ao passo que, no Brasil, o «Grito do Ipiranga» data de 1822.

Ambos os países herdaram das nações colonizadoras – Portugal e Espanha – uma série de problemas territoriais mal resolvidos, nomeadamente a região de Cisplatina, que hoje corresponde ao território do Uruguai. A área havia sido conquistada por Portugal em 1820, passando para a posse do Brasil no pós-independência, algo que não agradou à Argentina.

Assim sendo, as Províncias Unidas do Rio Prata – nome da Argentina à data - incentivaram os locais a revoltarem-se contra o domínio do Brasil, fornecendo-lhes apoio político e material. Em 1825 dá-se início a um conflito que ficou conhecido como «Guerra da Cisplatina» e que durou até 1828, data em que foi assinado o Tratado de Montevideu, do qual resultou a independência do Uruguai.

Até meio do século XX, não se assistiu a nenhum outro conflito armado entre a República da Argentina – nome que adotou com a Constituição de 1826 – e o Brasil, mas o clima de tensão manteve-se. Nas últimas décadas, as relações políticas, económicas e mercantis melhoraram e a cooperação estratégica entre ambos os países encontra-se no melhor ponto da história.

Ainda assim, no futebol e no desporto a rivalidade permanece imutável, sem sinais de poder seguir a tendência das restantes áreas do quotidiano. E porquê?

«Macacos», jogos que não chegaram a acabar e batalhas campais

Corria o longínquo ano de 1914, ano de má memória para a história mundial pelo início da Primeira Guerra Mundial, quando as seleções da Argentina e do Brasil se defrontaram, oficialmente, pela primeira vez. O encontro amigável decorreu no Estádio GEBA, em Buenos Aires, e terminou com uma vitória da equipa da casa por 3-0.

Nesse mesmo ano, foi criada a Copa Roca – atualmente Superclássico das Américas -, idealizada em 1913 por Julio Argentino Roca, embaixador da Argentina no Brasil e antigo presidente do país das Pampas. O objetivo da competição era criar uma rivalidade saudável e unir ambos os povos em torno do futebol, mas acabou por originar um dos maiores duelos da história do desporto-rei.

A primeira edição decorreu sem sobressaltos e o Brasil venceu por 1-0, mas em 1920 aconteceu o primeiro incidente desportivo entre ambos os países. À chegada a Buenos Aires para um amigável, a seleção brasileira deparou-se com um episódio de racismo, difundido por um jornal argentino. A publicação apelidava os brasileiros de «macacos», pelo facto de a canarinha contar com quatro jogadores negros no plantel.

Alguns jogadores recusaram-se a disputar a partida e o Brasil entrou apenas com sete elementos no relvado. Os adeptos argentinos revoltaram-se e invadiram o campo, levando a partida a ser interrompida. Quando retomada, a Argentina surgiu no terreno de jogo com sete elementos, também, por respeito ao adversário. O jogo terminou com a vitória azul celeste por 3-1.

Em 1937, registou-se novo incidente com nova invasão de campo dos adeptos argentinos, desta feita na final do Campeonato Sul-americano de Futebol – atual Copa América -, que a Argentina venceu por 2-0. Na sequência de tentativas de agressão, os jogadores brasileiros tiveram de abandonar o relvado, estando a partida interrompida mais de quarenta minutos. Este jogo ficou conhecido como «Jogo da Vergonha».

Dois anos volvidos e novo episódio, este um dos mais insólitos. Na edição da Copa Roca de 1939, o árbitro assinalou um pénalti duvidoso a favor do Brasil quando o marcador registava um empate (2-2). Os jogadores argentinos saíram de campo num gesto de revolta e o árbitro ordenou, ainda assim, a conversão do castigo máximo… sem guarda-redes. O Brasil venceu, portanto, por 3-2, levantando o troféu dessa edição.

Luta e água benta: o acentuar de um conflito

A final da Copa América de 1946 gerou uma das mais feias batalhas da história destes confrontos. Na sequência de duas lesões graves de jogadores da Argentina, por força de entradas violentas de membros da seleção brasileira, ambas as equipas geraram uma autêntica batalha campal, que motivou intervenção policial. Nova invasão de campo – um clássico – enviou as duas formações para os balneários.

Porém, um dos episódios mais caricatos é mais recente e data de 1990. Num encontro que a Argentina venceu por 1-0, o lateral brasileiro Branco queixou-se de ter recebido água com tranquilizantes vinda do banco azul celeste. O internacional canarinho apresentou tonturas e sonolência e alegou ter sido da água cedida pelos elementos argentinos. Este momento ficou conhecido como o «Escândalo da Água Benta».

Cânticos de adeptos argentinos durante o Mundial 2014, no Brasil:

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Episódios da rivalidade:

1940 – Maior goleada da Argentina ao Brasil (6-1)

1945 – Maior goleada do Brasil à Argentina (6-2)

1971 – Copa Roca dividida após empate nos dois jogos

1978 - Batalha do Rosário: jogo duro, com 13 faltas nos primeiros 14 minutos e muita violência à mistura

1991 – Jogo do grupo final da Copa América termina com cinco expulsões

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Cento e dois jogos e ligeiro favoritismo para o Brasil

O próprio confronto direto entre ambas as seleções revela um equilíbrio acérrimo. Com cento e dois jogos oficiais realizados, segundo dados da FIFA, regista-se um ligeiro favoritismo para o Brasil, que venceu 39. Por sua vez, a Argentina triunfou em 37 ocasiões. As restantes 26 partidas terminaram com empate. No capítulo dos golos, mais equilíbrio era impossível: 159 marcados e 159 sofridos por ambas as equipas.

Por tudo isto, o clássico desta quinta-feira adivinha-se, portanto, de tensão máxima. O Brasil recebe a Argentina no primeiro lugar da zona de qualificação do CONMEBOL, num jogo que marca o regresso da Canarinha ao Mineirão. A última vez que jogou na casa do Atlético Mineiro, o escrete foi goleado pela Alemanha por 7-1, no Mundial de 2014, numa hecatombe que ficou conhecida por «mineirazo».

A Argentina, por sua vez, ocupa o sexto lugar e está obrigada a ganhar.

A partida está agendada para esta quinta-feira às 23h45 e é um jogo a não perder. Por todos os antecedentes, pela rivalidade centenária e pela importância, promete ser quentinho…