«Príncipes há muitos, reis há muito poucos»
(Toni, sobre Eusébio)


O futebol português vai continuar a ser o mesmo. Mas depois da morte de Eusébio passou a saber que pode ter dias diferentes. Dias especiais.

Acompanho avidamente o futebol português desde que me lembro. Nas últimas três décadas e meia, não me recordo de um momento de tamanha união como o que se viveu nos últimos dois dias.

Na sociedade de reação ao segundo em que vivemos, isso talvez não vá durar muito. O episódio dos cachecóis já terá dado um primeiro sinal de «regresso à normalidade».

Mas fica o exemplo. Eusébio, que em vida teve tantos feitos admiráveis, somou esse na hora da partida deste mundo.


«Eusébio é um deus também com pequenas coisas»
(Luís Sobral, artigo na MF Total)

Como é que se reage ao desaparecimento de um mito? Num mundo com cada vez menos referências, as lágrimas que derramámos por Eusébio não terão sido tanto por ele. Foram mais por nós.

Cobertura mediática exagerada? Discordo. No radar noticioso, o público dita cada vez mais a rota. E, desde domingo de manhã, as «tags» de sites, TVs, rádios e jornais tinham um só nome: «Eusébio».

Ao contrário da crítica fácil de uma «overdose mediática» gerada pela morte do «Rei», o que vi nos últimos dois dias foram várias provas da elevada qualidade humana e literária de muitos dos que escrevem, pensam e falam sobre futebol em Portugal. As duas últimas edições da MF Total estão, claramente, nesse lote da melhor seleção.

Também por isso, esta crónica serve de homenagem a uma parte do melhor que li desde que se soube do desaparecimento de Eusébio. 

As reações espontâneas de gente anónima mostram o melhor lado do coração português. A colocação, em tempo recorde, de um cartaz gigante na sede da FPF interpreta bem esse sentimento.


«Os miúdos reconheciam o raro dom da inocência de Eusébio»
(Manuel Alegre, entrevista ao DN)

Não faz muito sentido centrar este texto no legado futebolístico de Eusébio, depois de dois dias de histórias, recordações, testemunhos, balanços, reposição de entrevistas e imagens de golos. Vitórias de sempre.

Mas já faz todo o sentido destacar aquilo que tornará Eusébio imortal: esse tal «raro dom de inocência» que Manuel Alegre identificou e que o «King» nunca perdeu. 

Mesmo depois de ter sido melhor jogador do Mundo. Mesmo depois de 700 golos em jogos oficiais, duas botas de ouro e um título de melhor marcador num Mundial. Mesmo depois 11 títulos nacionais, cinco Taças de Portugal e uma Taça dos Campeões.


«Nunca passei por ele sem dizer 'obrigado'»
(Ferreira Fernandes, artigo no DN)

Porque é que todos gostávamos tanto de Eusébio?

Pelo talento extraordinário. Pela entrega total. Pela pureza nos sentimentos. Pela bondade nas atitudes.

Num país dividido irremediavelmente por fanatismos clubísticos, Eusébio terá sido a única figura agregadora. Pelo menos, a única que conseguia reunir todos os opostos.


«Singular no nome, "o" Eusébio será sempre ele»
(Carlos Daniel, artigo no DN)

Como os deuses, só os predestinados atingem o patamar que lhes permite, serem tratados por «tu». «Eusébio» há só um, mesmo tendo havido a seguir tantos com o mesmo nome, inspirados pelo exemplo do «King».

Os golos de Eusébio «embalaram os homens tristes», como tão bem escreveu o Luís Pedro Ferreira na MF Total de ontem, numa bela reportagem com os adeptos anónimos que fizeram questão de ir dizer o último adeus ao ídolo.


«Um jogador gracioso, com um pé direito temível e um impressionante registo de golos»
(Obituário do «Guardian»)

A reação do Mundo à morte de Eusébio surpreendeu mesmo quem conhecia a admiração que o «Pantera Negra» despertava.

As homenagens feitas em Espanha e em Inglaterra, antes dos jogos do Real, do Liverpool e do Manchester, ficarão na história dos momentos mais elevados de «fair-play».


«Revejam o filme do primeiro golo de Eusébio contra o Brasil, em 1966, no Campeonato do Mundo de Inglaterra. Ou melhor, revejam-no depois do golo. Ele corre, de braço no ar. A cabeça está erguida, imperial, reparem bem: há no seu olhar, que abarca todo o estádio de Goodison Park, em Liverpool, a consciência de que a história está a passar por ele, pela sua passada elástica, veloz, o redor move-se em câmara lenta, só ele tem vida para além da vida corriqueira, insignificante, só ele ganha luz para além dessa vidinha de que falava Alexandre O’Neill e que acabrunhava o país triste. Corre, corre, corre, Eusébio corre. Está apenas a comemorar um golo, mas até disso dir-se-ia depender a sua própria existência. Aquela corrida parece durar horas e horas. Aquela corrida merecia durar horas e horas.»
(Afonso de Melo, in «Viagem em Redor do Planeta Eusébio», excerto do texto republicado na MF Total)

Há descrições que, de tão perfeitas, não só dispensam como desaconselham comentários adicionais.

Proponho apenas, por isso, que releiam, para saborear melhor, o delicioso excerto saído da pena, sempre cuidada, do Afonso de Melo.


«Magnânimo nos triunfos, humilde nas derrotas, Eusébio nunca se escondia ou abrigava das tempestades, dos desaires.»
(Joaquim Rita, texto especial para a MF Total)

As lágrimas que chorou depois da derrota nas meias-finais com a Inglaterra, no Mundial-66, mostraram tanto de Eusébio como os braços no ar depois de cada golo.

Eusébio tinha essa grandeza: era melhor que os outros a ganhar. Era melhor que os outros a perder.


«Pessoas como Eusébio nunca morrem»
(José Mourinho)

Há quem só consiga ser reconhecido depois de morrer. Eusébio teve a felicidade de ver uma estátua sua ser erguida e celebrada à entrada da sua «catedral».

Antes de morrer, Eusébio já se tinha revelado imortal.

A ideia de que Eusébio já não está no mundo dos vivos é difícil de assimilar.

Na torrente de testemunhos e recordações que lemos e ouvimos nos últimos dias, destaco a do Ricardo Araújo Pereira: «A minha vida é muito melhor por causa do Benfica. E o Benfica é muito melhor por causa do Eusébio. E, portanto, desse raciocínio muito simples decorre que a minha vida é muito melhor por causa do Eusébio. Não estava preparado para isto».


«Eusébio morreu num domingo, dia de futebol. E entrou em campo. Esteve em Old Trafford, naquele minuto de silêncio transformado em aplauso do relvado às bancadas antes do Manchester United-Swansea, esteve nos jogos da Taça de Portugal, esteve nos fumos negros nos braços de David Luiz e Ramires no Derby County-Chelsea. Eusébio é a memória do melhor que o futebol tem e o futebol teve-o no coração, no dia em que começou a despedir-se dele.»
(Berta Rodrigues, entrada do texto «Foi domingo e Eusébio entrou em campo», na MF Total)

O futebol português até pode ficar igual. Mas passou a ser um bocadinho melhor depois deste momento agregador.

Obrigado Eusébio. 


«Nem de propósito» é uma rubrica de opinião e análise da autoria do jornalista Germano Almeida. Sobre futebol (português e internacional) e às vezes sobre outros temas. Hoje em dia, tudo tem a ver com tudo, não é o que dizem?