*Enviado-especial ao Brasil

No final do jogo com os Estados Unidos, à medida que os jogadores portugueses iam desfilando cabisbaixos pela zona mista, quase se podia ouvir, vindo das catacumbas do Arena Amazónia, o sussurro de uma página a ser virada. Mesmo que as declarações de quem deu a cara façam a menção obrigatória às possibilidades aritméticas, nada do que aconteceu até agora no Brasil, à exceção do golo de Varela, ajuda a sustentar a convicção de que o Mundial português terá mais do que três jogos.

Sobre uma campanha marcada pela mais desastrosa condição física de que há memória numa participação lusa em fases finais – e a mais acidentada deste Mundial, a larga distância – sobram perguntas que terão de ser feitas brevemente.

Mesmo sendo prematuro fazer balanços com um jogo por cumprir, em especial depois de a cabeçada de Varela ter voltado a ligar a máquina, por mais uns dias, é evidente que os dois primeiros jogos no Brasil deixaram marcas. Marcas que, em alguns casos, vão demorar a ser apagadas – e, noutros, prometem assumir caráter definitivo.

As palavras de Cristiano Ronaldo no fim do jogo («não éramos nem nunca fomos favoritos, fomos ao play-off com a Suécia e foi o que foi. A ilusão de que Portugal podia ser campeão do mundo seria fictícia») são obviamente deslocadas: o que está em causa, nesta altura, é apenas a passagem à segunda fase. Daí até a uma suposta conquista do título vai um abismo de ambição com mais quatro degraus de competência (oitavos, quartos, meias e final). O problema será não se passar o primeiro – mesmo considerando um grupo mais difícil e equilibrado do que foi dito a partir de maio, quando começou o circo ruidoso da febre patrioteira.

E, no entanto, a frase do capitão tem o mérito, tardio, de adequar o horizonte de expectativas a uma seleção que dos últimos nove jogos em Campeonatos do Mundo só venceu um – diante da Coreia do Norte. É bom que a mensagem perdure para as próximas competições, porque as perspetivas estão longe de apontar para uma mudança de estatuto a curto prazo. Mesmo com o previsível fim de ciclo para vários fixos de Paulo Bento – oito dos 23 convocados já dobraram o cabo dos 30 anos – não se vê, ao longe, a chegada de um bloco compacto de talentos que permita à seleção um patamar de ambição superior ao atual.

Para manter a coerência, entretanto, talvez fosse útil acabar também com a cartilha obrigatória a cada conferência de imprensa («temos o melhor do Mundo e vamos aproveitar isso») - em especial numa altura em que as limitações físicas de Ronaldo, finalmente assumidas pelo próprio, tornam a expressão «melhor do Mundo» um cargo honorífico gerador de ruído e com nulo proveito prático – para o grupo e para o próprio Ronaldo.

Outro argumento usado por sistema – como o fez João Pereira, nesta segunda-feira – é o de lembrar que «esta é a equipa que chegou às meias-finais do Euro-2012», ficando a um passo de afastar a Espanha.

Mas essa não é um boa defesa, pela simples razão de que passaram dois anos e nenhum destes jogadores, e das suas circunstâncias, é o que era em 2012. Dizer que a base é a mesma seria um bom ponto de partida para defender um projeto sólido e coerente. Dizer que a equipa é integralmente a mesma (só a hecatombe de lesões e castigos forçou mudanças) é algo diferente: sublinha a escassez do campo de recrutamento e transforma o natural conservadorismo de qualquer selecionador numa obstinação, muitas vezes insensível aos sinais dos tempos.

Foi um pouco o que, numa escala maior, aconteceu à Espanha: muito compreensivelmente, Del Bosque levou a lealdade ao seu grupo até ao ponto de rotura o confrontar com a necessidade de uma renovação forçada.

Para além da questão essencial sobre toda esta campanha – quais eram as reais indicações sobre a condição física dos jogadores no momento em que Paulo Bento escolheu os 23, e de que forma isso foi tido em conta nas escolhas, uma pergunta que se faz de forma gritante no caso de Hélder Postiga – sobram ainda duas questões com nome próprio. Não por acaso, os dois nomes com mais crédito na equipa.

A primeira incide em João Moutinho: se o desgaste de uma temporada exigente, e sofrida até à última, pode explicar problemas de vários jogadores influentes, esse não é, de todo, o caso do médio do Mónaco, a assinar no Brasil das exibições mais banais em toda a carreira. Sendo ele o jogador do coletivo por excelência, isto volta a deixar interrogações sobre o plano de trabalho que foi possível elaborar, em três semanas marcadas por sucessivas ausências e treinos condicionados de habituais titulares.

A segunda tem como destinatário Cristiano Ronaldo, e em particular quem o aconselha, e ajuda a definir metas de carreira. A menos que diante do Gana aconteça o «milagre» que todos assumem como tal, o homem de todos os recordes está a passar ao lado da última oportunidade, real, de deixar marca duradoura na história dos Mundiais. Passando de largo pela gestão irresponsável que o Real Madrid fez da sua condição física nos últimos dois meses e meio, parece claro que também houve, do seu lado, e do seu staff, um enorme erro de avaliação de prioridades.

Isto poderá ficar ainda mais sublinhado se, depois de uma temporada medíocre (para os seus padrões...) no Barcelona, Messi ou Neymar conseguirem no Brasil o passaporte para o clube dos imortais – esse que não aceita sócios sem um Mundial de génio na lapela. Mas talvez só daqui por dez anos isso seja evidente para todos.