15 de fevereiro de 1997. O São Paulo jogava fora de portas, em casa do União São João, a contar para o Campeonato Paulista e aquele que seria apenas mais um jogo do calendário dos tricolores, acabou por ser uma partida que ficará para sempre na história de um guarda-redes, do clube e do futebol brasileiro.

E porquê? Porque foi ali que se começou a construir uma lenda, um mito e uma «máquina» goleadora. Falamos de Rogério Ceni, o guarda-redes que ficará mais conhecido pelos golos que marcava do que pelas defesas que fazia e que agora termina a carreira.

Mas voltemos a 1997.

Nesse encontro, o cronómetro já passava dos 45 minutos, quando o árbitro assinalou um livre a favor do São Paulo. O marcador assinalava 0-0 e Muricy Ramalho, o treinador, deu ordem ao seu guarda-redes, Rogério Ceni, para avançar para a bola. O guardião subiu no terreno, ajeitou a bola e... golo. Estava feito o primeiro da carreira e naquela tarde ninguém pensaria que Rogério Ceni marcaria por mais 130 vezes até pendurar luvas e botas.

«Eu treinava cem faltas por dia durante seis meses para ter essa oportunidade. O Muricy deu-me a chance. Foi algo memorável», disse ao jornal Estadão, no 18º aniversário desse golo.

O treino exaustivo de bolas paradas e os golos em jogos sucessivos demonstraram que aquele primeiro golo não foi obra do acaso e isso deu-lhe o estatuto de batedor oficial.

Veja como foi o primeiro golo de Ceni:



Chilavert, um antigo guardião paraguaio, já se destacava como goleador e Rogério Ceni seguiu o seu exemplo e superou-o largamente. Em 2006, o brasileiro bateu a marca de 62 golos de Chilavert, com um golo ao Palmeiras, de penálti, e tornou-se o guarda-redes com mais golos de sempre.

Em Portugal temos alguns casos de guarda-redes que marcaram golos, em situações esporádicas, como Ivo Gonçalves ou até Palatsi. No Euro 2004, Ricardo brilhou ao defender e marcar o penálti que deu o apuramento a Portugal para as meias-finais, mas já antes tinha decidido um Boavista-Beira-Mar (1-0) através da conversão de uma grande penalidade.

O MaisFutebol falou com o ex-guardião e este revelou que não é fácil convencer um treinador a ser a principal escolha.

«Não são todos os treinadores que tomam essa decisão e não é muito usual porque tens que abandonar o teu posto especifico, sair da tua baliza para ir à outra, mas desde que o treinador tenha confiança em ti e se sinta à vontade, tudo é normal porque és igual a outro joagdor que está dentro do campo», referiu o antigo internacional português, salientando que treinava com os companheiros esta situação de jogo e foi sempre algo que lhe deu gosto fazer.

Rogério Ceni é um caso à parte pela regularidade de golos e Ricardo destaca as boas qualidades que o brasileiro tinha na sua posição, um pouco ofuscado pela sua eficácia nas bolas paradas. «É um guarda-redes que marcou a sua geração. Fica marcado não tanto pelo que defendia mas pelo que marcava, porque não era normal aquele número de golos, mas não deixa de ser um dos jogadores fantasticos na posição», afirmou.

A carreira termina agora da pior forma, já que está lesionado e não alinhou nos últimos jogos do Brasileirão. A última aparição de Ceni foi a 29 de outubro, nas meias-finais da Copa do Brasil, perante o rival Santos. Saiu lesionado ao intervalo, quando a sua equipa já perdia por 3-0 e Ricardo Oliveira, avançado santista, ficará na história como o último jogador a marcar ao «mítico» guarda-redes.

A despedida não foi certamente a que queria e, por isso, fará no dia 11 de dezembro, este sexta, um jogo no Morumbi, «a sua segunda casa», que servirá para dizer adeus aos adeptos do São Paulo, num duelo que terá frente a frente os campeões do mundo de clubes de 1992 e 1993 contra os de 2005.

Rogério Ceni fez parte desses plantéis. Aliás foi em 1992 que começou o seu trajeto na equipa profissional do São Paulo, quando, em agosto, o treinador Telê Santana o colocou no banco, numa partida com o Guarani. Depois, foi aparecendo gradualmente, sobretudo nas competições secundárias, e só em 1997 (24 anos), com a saída de Zetti, o guardião se assumiu como titular.

A partir desta temporada, Rogério Ceni não mais deixou que outro fosse titular na baliza do São Paulo e os seus golos ajudaram a que se tornasse um ídolo dos adeptos. Começou a quebrar recordes, quer em golos, quer em jogos com as cores do São Paulo e deixou números que serão muito difíceis de quebrar. Mas nem tudo foi fácil...



O início difícil do «mito»

O mito, como lhe chamam, começou a ser construído em 1990, quando assinou pelo clube paulista, vindo do Sinop, do estado de Mato Grosso. Aos 17 anos, Ceni passou a morar no Morumbi, estádio do clube, depois de já se ter estreado no escalão sénior pela sua antiga equipa.

O início não foi fácil e Ceni vivia na sombra de Alexandre, um jovem promissor que era o terceiro guarda-redes da equipa principal e o titular da equipa de sub-20. Só que um trágico acidente de automóvel, roubou a vida a Alexandre e Ceni foi promovido a terceiro guarda-redes da equipa de Telê Santana. Zetti, ídolo do goleador, era o titular e intocável, e por isso Ceni teve que ser paciente.

Só se estreou em 1992, no torneio Santiago Compostela, em Espanha, e logo nesse primeiro jogo, contra o Tenerife, defendeu um penálti e começou a dar nas vistas. No jogo seguinte, na final do torneio voltou a defender mais dois e deu o troféu aos brasileiros, na final sobre o River Plate.

As boas exibições nesse torneio deram-lhe a possibilidade de disputar como titular a Copa Conmebol (competição anterior à Copa Sul-americana na qual jogava a equipa de reservas). O São Paulo ergueu o troféu em 1994 com Rogério Ceni a brilhar. Esta equipa ficaria apelidada de «Expressinho» e Zetti, depois de terminar a carreira, afirmou que a existência deste conjunto, uma espécie de equipa B, seria fundamental para o seu sucessor se lapidar e poder substituí-lo da melhor forma.

Essa troca só iria acontecer no final da época de 1996, quando Ceni já perdia a paciência por não conseguir a titularidade. Chegou mesmo a receber propostas para sair mas o presidente segurou-o, dizendo-lhe que Zetti iria sair para o Santos e ele subiria de posto. Dito e feito.

Agarrou de vez a titularidade e fez 71 jogos, marcando três golos logo na primeira época como número 1. Até 2015 foi dono e senhor das redes dos paulistas.

1237 partidas com o emblema do São Paulo ao peito e 131 golos, que fazem dele o jogador que mais vezes representou o clube e um dos melhores goleadores da sua história.

Tornou-se o grande líder dos tricolores e na última partida do São Paulo no Brasileirão deu a palestra aos companheiros em que se despediu deles como jogador. Vale a pena ouvir, a partir do minuto 2.



Uma história de recordes e de títulos

São muitos os recordes que Rogério Ceni foi batendo ao longo da carreira e o mais relevante é mesmo o registo goleador que começou com o livre frente ao União São João. A última vez que festejou foi de penálti, num duelo para a Copa do Brasil, contra o Figueirense no mesmo minuto (45+1’) em que marcou o golo inaugural. Que coincidência!

Com os 131 golos marcados, Ceni é o 10º melhor marcador de sempre do clube e é o melhor marcador do São Paulo na Taça Libertadores, com 11 golos. Não ficou em nenhuma época em branco desde que começou a ser o homem das bolas paradas e teve o seu auge goleador em 2005 com 21 (!) golos na temporada.

Registo que ultrapassa muitos avançados e que tornam Rogério Ceni um «goleiro» especial. Capitão desde 1999, Ceni ultrapassou Ryan Giggs como o jogador com mais jogos com a braçadeira no braço. O galês fez 866 partidas como capitão, enquanto Ceni alcançou os 953 encontros. É também o jogador do futebol mundial com mais vitórias pela mesma equipa, superando o mesmo Ryan Giggs e, ainda, o jogador com mais jogos no Brasileirão.

Internamente, Rogério Ceni é o jogador com mais jogos pelo seu «eterno» clube e com mais jogos no Morumbi, casa dos tricolores, e detém, também, o recorde de partidas consecutivas a jogar (73). Aliás, o guardião tem as duas melhores sequências, a primeira de 72 encontros e depois a recordista de 73.

Ceni tem também um vasto conjunto de distinções individuais. Foi considerado duas vezes o melhor entre os postes do Brasileirão (2006 e 2007) e nas duas foi também o melhor jogador do campeonato brasileiro. No ano de 2007 ainda foi escolhido pelos adeptos como o jogador do ano. Esteve no onze do ano do campeonato brasileiro por seis vezes.

Em competições internacionais foi distinguido como o melhor jogador do campeonato do mundo de clubes, em 2005, numa final em que o São Paulo venceu o Liverpool (1-0) e tornou-se no único guarda-redes a marcar na competição, nas «meias» com o Al-Ittihad.

Coletivamente, Ceni venceu três vezes o Brasileirão (2006, 2007 e 2008), três vezes o Campeonato Paulista (1998, 2000, 2005) e por uma vez o Torneio Rio-São Paulo (2001). Internacionalmente conquistou um Campeonato do Mundo de clubes (2005), duas Taças Intercontinentais (1992 e 1993), três Taças Libertadores (1992, 1993 e 2005), uma Supertaça Libertadores (1993), uma Taça Sul-Americana (1993), duas Recopa Sul-americanas (1993 e 1994), uma Taça Conmebol (1994) e uma Copa Master Conmebol (1996).



O capítulo no «Escrete»: 17 internacionalizações e o título mundial em 2002

Rogério Ceni foi indiscutível no São Paulo, mas nunca se conseguiu impor na seleção brasileira, que contou com grandes nomes na baliza durante os seus melhores períodos de forma. Taffarel, Marcos, Dida, Júlio César foram titulares do Escrete, mas Rogério Ceni fez quase sempre parte das escolhas dos selecionadores.

Apenas 17 internacionalizações, sendo a primeira delas frente ao México na Taça das Confederações de 1997, vencida pelo Brasil. Entrou para substituir o lesionado Dida aos 82 minutos.

Esse foi um dos dois títulos conquistados pelo guarda-redes ao serviço da sua pátria, já que em 2002 fez parte da comitiva que Luiz Felipe Scolari levou para o Mundial da Coreia do Sul e Japão e que levantou o troféu.

Ceni não sairia do banco na competição e só em 2006 se iria estrear num Campeonato do Mundo, em duelo com o Japão. Jogou os mesmos oito minutos que tinha jogado na Taça das Confederações perante os «aztecas», após entrar para o lugar do mesmo Dida.

Foi essa a última internacionalização, curiosamente, com os mesmos moldes da primeira.

Nessas 17 partidas, Rogério Ceni nunca marcou um golo e essa foi umas das suas grandes «falhas» da carreira, mas a culpa não foi só da sua falta de eficácia, já que o Brasil tinha cobradores de livres e penáltis exímios, como Ronaldinho, Kaká, Rivaldo, Roberto Carlos ou Juninho. Mesmo assim teve algumas oportunidades.

Apesar da não afirmação internacional, Ricardo considera que «este foi um guarda-redes que marcou a sua geração», embora não saiba se será o melhor brasileiro de sempre: «Eu não sou brasileiro, para mim fica a qualidade dele, mas não sei se será ou não o melhor, foi um dos bons.»

Rogério Ceni termina em 2015 a sua carreira dourada de 25 anos sempre ao serviço do mesmo clube, 23 como profissional, e encerra mais uma página dourada do São Paulo, onde é um «mito» e onde dificilmente surgirá tão bonita história.

O guardião e os seus golos eram sinónimo de pontos e triunfos para os tricolores, já que quando Ceni faturava o São Paulo vencia na maioria das vezes. Ganharam 68 vezes, empataram 19 e só por duas vezes saíram derrotados. O guarda-redes bisou ainda por cinco vezes. 

No clube paulista existe um lema: « Todos têm goleiro, só nós temos Rogério Ceni». O fim do «mito» é esta sexta-feira num jogo de estrelas, mas Ceni será imortal e a grande lenda do clube paulista, todos garantem.

Haverá algum guarda-redes que se arrisque a bater este recorde? Se houver, Rogério Ceni assistirá do seu trono de 131 golos.