Carlos Ramos fechou o círculo. O português que atingiu o topo no ténis mundial, o primeiro árbitro de sempre a dirigir finais dos quatro Grand Slams, além de uma final olímpica, despediu-se da cadeira, sítio «espetacular para ver o jogo, mas nem sempre confortável».

O momento da decisão não foi planeado. Estava previsto que acontecesse em Roland Garros, mas durante o Estoril Open deste ano ele percebeu que fazia sentido terminar ali, em casa. Nesta quarta-feira, voltou ao lugar onde tudo começou. O Jamor, onde começou a jogar e depois a arbitrar, primeiro como forma de ganhar algum dinheiro para pagar as raquetes e poder continuar a jogar ténis, antes de perceber que não tinha futuro como jogador e se dedicar a tempo inteiro à arbitragem, onde atingiu o nível mais alto da certificação internacional aos 23 anos.

Depois de uma homenagem da Federação Portuguesa de Ténis e de uma conferência de imprensa no Jamor, com ténis como pano de fundo – está a decorrer o Grupo II da Zona Europa-África da Billie Jean King Cup, antiga Fed Cup – falou ao Maisfutebol, numa entrevista em que fala do privilégio que foram estas mais de duas décadas na elite do ténis mundial e da paixão com que viveu cada momento.

Carlos Ramos, 52 anos, conta como decidiu agora sair pelo seu próprio pé, depois de perceber que já não estava no auge das suas capacidades. E fala do que fará a partir daqui. Sem grandes planos, porque prefere viver no presente. Vai continuar no ténis, agora como juiz árbitro. Continua ligado à Federação Internacional de Ténis, portanto sujeito a um código de conduta que o impede de falar de jogadores, jogos ou casos específicos. Por isso, continua a não poder falar por exemplo sobre aquele incidente com Serena Williams na final do US Open 2018.

A conversa passa pelos primeiros anos em Moçambique, de onde a família teve de sair quando tinha três anos, pelo futebol como primeira paixão – era adepto do FC Porto, começou por querer ser guarda-redes, tinha Bento como ídolo e até quis ter o cabelo igual a ele. E revisita uma carreira única, que lhe abriu as portas «do ténis com que sonhava, viajar pelo mundo fora e estar em torneios onde nunca poderia estar como jogador».

Foi aqui no Jamor que começou todo o seu percurso, não foi?

Sim, foi aqui que comecei a jogar ténis. O primeiro torneio que joguei foi o Sport Goofy, aqui no Jamor. O meu clube era aqui, o Clube de Ténis do Jamor, era treinado pelo Mário Azevedo Gomes. A primeira vez que arbitrei também foi aqui, e a primeira vez que entrei como juiz de linha num campo. Fui apanha-bolas aqui, juiz de linha, árbitro de cadeira. Tudo começou no Jamor. Em termos de torneios grandes tudo começou no Estoril Open, ainda no Jamor, e tudo acabou como árbitro de cadeira aqui. É fechar o círculo. Sinto-me mesmo a fechar o círculo.

Quando começou o Estoril Open deste ano ainda não tinha decidido que ia acabar agora?

Não. A ideia foi ganhando força a cada dia. Pensei: é aqui que vou acabar, é assim que estou a sentir. Está a correr bem, estou a gostar de arbitrar, mas sinto que é o momento de parar.

«Não queria correr o risco de ser mau»

Já andava a ponderar essa decisão?

Sim, há muito tempo. Estava a ponderar porque estou a arbitrar menos torneios do que arbitrava, sentia que estava um bocadinho menos rodado também. Isso e a idade contribuem para que as coisas fiquem mais frágeis. A diferença entre arbitrar muito bem e arbitrar muito mal é muito pequena. Tudo conta. Eu estava a sentir que estava a ficar tudo mais escorregadio. E não queria correr o risco de ser mau. Queria acabar sendo escolha minha e não sendo imposto. Não queria que me dissessem: ‘Carlos, vê lá se acabas porque já não apitas bem o suficiente.’ E acho que o consegui fazer.

Com a idade estava a sentir que já não tinha tanta acuidade, nomeadamente visual?

Eu sempre arbitrei sem óculos, e agora, nos últimos dois anos, já usava ou lentes ou óculos. Wimbledon, no ano passado, foi o primeiro torneio que eu arbitrei de óculos. E tenho a dizer que não tive a mínima reação negativa de qualquer jogador. Pensei que pudesse ser difícil de aceitar em termos da minha imagem com os jogadores, mas arbitrei muitíssimos jogos importantes e com jogadores de top, jogos difíceis e com problemas de arbitragem e jamais houve uma menção ao facto de estar a arbitrar de óculos. Com os óculos vejo bem, mas sei que os meus olhos não são o que eram. É normal, na vida há um limite para tudo e na arbitragem de cadeira é preciso reflexos, é preciso muita rodagem também. A associação de fazer menos jogos, estar menos rodado e mais velho, fez com que a decisão fosse mais cedo do que poderia ter sido. Deixei de estar no auge e hoje é o momento certo para deixar e me dedicar a outras coisas, ter outros desafios e acabar bem. Sair bem da arbitragem e sair como queria sair.

Já lhe caiu a ficha? A consciência de que acabou de facto, que foi a última vez que esteve numa cadeira a dirigir um encontro?

Não sei. Não. Mas eu não sou muito sentimentalista. Sou cada vez mais uma pessoa de presente. Tenho a felicidade de ter uma esposa que me ensinou a viver o presente, mais do que era natural em mim. Não tenho nostalgia nenhuma. Talvez tenha daqui a uns tempos, mas o que me interessa é o presente. Eu nem me preocupo com o futuro. Talvez seja um bocadinho irresponsável, mas gosto realmente de viver no presente. Para mim é a única coisa que temos.

«Pedi à minha mãe para fazer uma carapinha, queria ter o cabelo como o Bento»

Agora, olhando não para o futuro, mas para o passado. Como foi o seu percurso? Não começou por jogar ténis, pois não?

Não. Eu sempre gostei muito de desporto. Sempre fui um miúdo de exterior, da rua. Eu nasci em Moçambique, vim com três anos para Portugal e sempre fui um miúdo de rua. Só estava bem na rua a jogar futebol. Cresci no Cacém e passava o dia na rua. Ia jogar futebol, ia correr. Não tinha muito jeito com os pés e puseram-me logo na baliza. Eu era completamente louco por futebol e pela posição de guarda-redes. Mas como era pequeno de mais - eu não sou alto mas na altura era realmente pequeno -, não dava para ser guarda-redes. O meu ídolo era o Bento. Até me lembro em miúdo de pedir à minha mãe para no cabeleireiro fazer uma carapinha. Ele tinha uma espécie de carapinha, o cabelo assim encaracolado. Eu queria ter o cabelo como o Bento e tudo. Era louco por ele. Ele era pequeno também. Depois, na geração seguinte de guarda-redes assim bons tivemos um que era oposto, o Zé Beto, que tinha para aí 1,90m, encorpado. Faleceu num acidente…

Um acidente de automóvel…

Sim. O meu ídolo a seguir ao Bento foi o Zé Beto. O Bento deve ter sido o último guarda-redes pequeno, assim de topo. Depois era tudo gente encorpada, grande, para poder especialmente no jogo aéreo ter alguma presença.

Era fã do Bento e também era adepto do Benfica?

Não, o meu clube era o Porto. Quando era criança foi aquela fase do FC Porto em que ganhou a Taça dos Campeões e depois ganhou aquele jogo no Japão, a Taça Intercontinental. O calcanhar do Madjer, tudo isso… Em miúdo havia aquela coisa de perguntar de que clube és. E eu decidi-me pelo FC Porto, baseado nisso. Mas o meu ídolo era o Bento, que não só era o guarda-redes do Benfica mas também da seleção nacional.

Voltando a Moçambique, tem algumas memórias? Mencionou que a sua família passou por momentos difíceis na altura da independência.

Lembro-me pouco, mas lembro-me de o nosso carro ter sido atacado, de o vidro ter sido partido e um pedregulho entrar no carro. Foi em 1974. No dia seguinte o meu pai pôs a família toda num avião para Portugal. O meu pai era o responsável de mecânica da Deta, que era a companhia moçambicana de aviação. Ele ficou lá um ano ainda e nós fomos acolhidos em Fátima. Portanto, eu sou retornado. Estivemos um ano em Fátima e depois os meus pais compraram um apartamento no Cacém. Era o início do Cacém. E lá ficámos. Toda a minha juventude foi vivida no Cacém.

E então, tentou jogar futebol, mas…

Pois, queria jogar futebol mas apercebi-me que era pequeno de mais. Com os pés não tinha jeito e não tinha altura para ser guarda-redes. E comecei a interessar-me também pelo ténis.

Com que idade?

Eu diria que com nove, dez anos. O meu pai depois foi trabalhar para Angola. Nós íamos de férias para Angola e dois dos colegas do meu pai jogavam um bocadinho de ténis. Uma vez fui com eles e adorei aquilo. Comecei a ir com eles às vezes e a treinar sozinho, contra a parede. Comecei a adorar o ténis. E comecei a jogar, primeiro só nas férias escolares. O primeiro sítio onde joguei ténis foi em Luanda, num clube que se chama clube de ténis dos Coqueiros e é ao lado do maior estádio de futebol de Luanda.

O Estádio dos Coqueiros…

Sim. Foi onde peguei numa raquete de ténis pela primeira vez. Depois inscrevi-me no Sport Goofy e depois conheci uma pessoa daqui, um amigo que é treinador de ténis há muitos anos, o José Augusto. Ele falou-me do Clube de Ténis do Jamor e o resto é história.

O início na arbitragem para pagar as raquetes

E como é que começou a arbitragem?

Comecei por entrar no campo sem ser para jogar como apanha-bolas, depois como juiz de linha. E interessei-me pela arbitragem, principalmente para ganhar um bocadinho de dinheiro, para pagar as minhas raquetes e o clube e ter uma certa independência financeira.

O que é que o levou a decidir continuar na arbitragem?

No primeiro dia em que entrei no campo como juiz de linha adorei aquilo. Gostei muito da sensação de ser árbitro. Eu tentava jogar, era muito dedicado nos treinos e nos torneios, mas não tinha grande talento. Comecei um bocadinho tarde e a nível e talento e fisicamente não tinha as qualidades de que precisava. Portanto, a arbitragem abriu-me portas para estar em torneios onde eu não podia estar como jogador. E abriu-me também as portas do ténis internacional, com que eu sonhava. Viajar pelo mundo fora, estar em torneios que eu só via na televisão ou nas revistas e nos jornais.

Como é que chegou a árbitro internacional?

É um processo longo. Em Portugal havia muitos torneios nessa época. Havia as condições ideais para ganhar experiência como árbitro. Na arbitragem é muito importante a experiência. Aqui tínhamos as condições ideais para um jovem árbitro ganhar experiência. Ainda por cima, as instâncias do ténis queriam árbitros mais novos. A maior parte dos árbitros já tinham uma certa idade e havia necessidade de sangue novo na arbitragem. Eu era sangue novo mesmo e estava louco pela arbitragem. Em termos de arbitragem internacional, fui o mais novo da história a ter o certificado de nível mais alto. Tive o Gold Badge com 23 anos.

No seu tempo houve vários árbitros portugueses que chegaram a alto nível internacional. O que é que explica isso?

Houve um árbitro que abriu as portas, que é o Jorge Dias. É um bocadinho mais velho do que nós e era o único com verdadeira experiência internacional ao mais alto nível. Abriu-nos as portas no sentido de nos aconselhar, de nos motivar e de nos inspirar. Para mim o Jorge foi uma enorme inspiração. Portugal era não só pequeno em tamanho, mas na altura pouco representativo no ténis. Tínhamos bons jogadores, o Nuno Marques e outros chegaram bastante alto. Mas em termos de arbitragem houve um grupo de árbitros que se salientou muito. O Carlos Sanches, a Mariana Alves, também Gold Badge, e mais um grupo de árbitros internacionais que foram Silver e Bronze. Para o seu tamanho e representatividade no mundo do ténis, Portugal era um dos países que tinha a melhor arbitragem.

Porque é que acha que isso aconteceu nessa altura?

Porque havia muitos torneios, havia o Jorge que nos inspirou, e talvez pelas nossas personalidades, não sei. A vida de árbitro profissional também era mais atrativa em Portugal do que seria em certos países. Em termos financeiros, em Portugal nos anos 80 e 90 havia uma grande diferença de custo de vida para o resto da Europa. Eu lembro-me que na primeira vez que fui à Alemanha fazer uma formação fiquei escandalizado com os preços. O que se ganhava com a arbitragem era importante para as pessoas decidirem se continuavam a estudar, se iam procurar emprego… Por exemplo, nos Estados Unidos durante muitos anos houve muita falta de árbitros de topo, porque a arbitragem para o nível de vida americano, para as expectativas de um jovem americano, em geral não paga o suficiente. Não é aliciante como era em Portugal nos anos 80 e 90.

«O maior desgosto da vida» na primeira vez em Roland Garros

Contou que na primeira vez que esteve em Roland Garros, para tirar o curso, estava deslumbrado, mas teve um problema com as fotografias que tirou…

Sim. Tinha uma daquelas máquinas manuais, de rolo. Tirei fotografias ao estádio todo e o rolo devia estar na última fotografia. Sem querer forcei e devo ter rompido aquilo. Tirei para aí 30 ou 40 fotografias, mas ficaram todas sobrepostas. Quando fui revelar aquilo foi o maior desgosto da minha vida, na altura.

Mas havia de lá voltar muitas vezes…

Sim. 30 anos consecutivos.

Como foi o primeiro Grand Slam que apitou? Lembra-se como viveu esses dias?

O US Open, em 1991. Foi uma excitação total. Na altura tinha 20 anos. Passar em termos internacionais do anonimato a fazer um Grand Slam… Logicamente fui lá, fiz árbitro de cadeira no qualifying e depois fiz juiz de linha. Mas foi uma loucura. Lembro-me que quando cheguei a Nova Iorque passava o dia todo a olhar para cima, para os arranha-céus. E o próprio torneio era de uma dimensão que eu não sabia que existia.

«Tantas emoções» na primeira final de um Grand Slam

E depois como foi a primeira final de um Grand Slam, na Austrália?

Foi em 2005. A final entre o Lleyton Hewitt e o Marat Safin. Era a minha primeira final, era o centenário do Open da Austrália, era a primeira vez em 20 anos que havia um australiano na final. Era a primeira vez que se jogava a final à noite, em prime time. Foram tantas emoções que a certa altura, cortei as mangas da camisola que tinha vestida, porque achei que se calhar estava com a circulação a parar um bocadinho. São tantas emoções novas que, por muita experiência que a pessoa tenha, é difícil lidar com elas. Essa final teve a Olivia Newton John no sorteio. Foi um espetáculo. Eu não era fã dela, mas ela foi de uma simpatia extraordinária. E disse-me que estava muito nervosa. Não é necessariamente fácil pegar na moeda e atirar a moeda ao ar, às vezes a moeda cai mal. Ela disse: ‘Estou tão nervosa, estive a treinar na minha cozinha.’ Tenho aqui uma fotografia desse momento.

(Procura no telemóvel, não encontra, mas vai voltar a procurar daqui a pouco)

Tudo isso foi a minha primeira final de um Grand Slam. Para um português, fazer uma final do Grand Slam, foi fantástico. Tinha 34 anos, já estava na arbitragem há bastante tempo e estava há muitos anos à espera daquela oportunidade.

As grandes finais foram os jogos que mais o marcaram?

O primeiro é único. Mas para os jogadores também, se lhes perguntar. Raramente a ganham, porque aquilo é um jogo completamente diferente. Em termos de emoções é completamente diferente, tem de se aprender a gerir aquilo tudo. Para mim foi difícil em termos de gestão das emoções, mas tive sorte que tenha corrido muito bem. Sorte e valor, com certeza também. Mas não é fácil. É uma pressão muito grande. É uma mistura de felicidade de estar ali, de sentir que estamos a fazer uma coisa histórica para nós, um objetivo que perseguimos durante muitos anos. Estar ali no campo, fazer aquilo e pensar: ‘Sou mesmo eu que estou aqui? Isto é mesmo verdade?’ Uma pessoa tem vontade de se beliscar. Houve muitos jogos que me marcaram, quase todos os jogos me marcaram. Mas as grandes finais acabam por nos marcar mais, por toda a parte mediática à volta, a preparação…

A final olímpica em 2012 também foi muito especial?

Muito. Estávamos em Wimbledon, estava um britânico na final contra o Federer, que nunca tinha ganho - e acabou por nunca ganhar em singulares. Mais uma vez, o ‘buildup’ daquele jogo foi inacreditável. E tinha a minha mulher nas bancadas. Foi ver a final, o que também foi muito especial para mim.

A preparação para cada jogo

Como é que prepara os encontros? Vê muitos jogos de cada tenista?

Tento adaptar a minha preparação ao jogo, aos jogadores, às condições. Há muita gente que é supersticiosa e quer repetir uma rotina. Eu não, sou o oposto. Não estou nada ligado a rotinas, mas estou ligado a estar bem preparado. Tento que a minha forma de me preparar seja o mais objetiva possível. Por exemplo, se não conheço os treinadores, tento fazer uma busca de quem são, como é que se chamam, para os poder identificar facilmente e se tiver que dizer alguma coisa ao jogador sobre o treinador, não dizer «o teu treinador», mas dizer o nome: ‘Olha, diz ao Pedro que…’ Também tento preparar-me para as condições de clima, por exemplo. Preparava-me para tudo, para aquele jogo: analisar a relação que tinha com aqueles jogadores, analisar um bocado os jogos que eles tinham jogado uns contra os outros, tentar ver as meias-finais quando ia fazer uma final, falar com os meus colegas que tinham feito as meias-finais. O público, a relação do jogador com o público. Tentar antecipar: vou ter um publico que vai apoiar este jogador ou não?

Ou um público hostil…

Ou que vá ser hostil, às vezes há cenários em que pode ser hostil. Estar preparado, que não é estar com medo. Eu não acredito no medo. Acredito na preparação. E também não acredito em antecipar tudo. Estando bem preparados temos mais margem, mais bagagem para nos adaptarmos melhor. Não tento, ou não tentava, antecipar tudo, tentava pôr-me na melhor posição possível para me adaptar.

E quando não está a arbitrar, como é a sua rotina? Passa muito tempo a ver ténis?

Depende. Passo o tempo a fazer coisas que são importantes para mim naquele momento. Eu gosto muito de fazer desporto, portanto quando estou nos torneios quase todos os dias faço desporto, é importante para o meu equilíbrio. Tento sempre encontrar tempo para ir correr, ou ir ao ginásio. Nos últimos dois anos comecei a fazer muito ciclismo. Viajar com a bicicleta é difícil, mas vou ao ginásio fazer bicicleta. Depois, eu sou vegano. Comer bem é muito importante para mim também, comer de forma equilibrada. E nem sempre é fácil nos torneios comer vegan. Às vezes como na cidade, antes ou depois do jogo.

O que é determinante para sentir que um jogo lhe correu muito bem?

É um jogo em que a arbitragem no geral é justa e as minhas decisões foram boas. Agora, quanto mais o jogo foi desafiante, mais valor tem essa arbitragem ter sido justa e as decisões terem sido boas.

Gosta da pressão?

Adoro. Aprendi a gostar. Gosto de assumir a preparação. Eu não gosto nada de touradas. Sou vegano, portanto imagine. Mas admirava muito os forcados, que enfrentavam o touro. Muitas vezes fiz essa analogia na minha vida de árbitro. Não é provocar, o forcado provoca um bocado o touro. Mas é estar lá quando as coisas acontecem. E não recuar. Não ter medo do adversário, que neste caso é a situação, acolhê-la e lidar com ela, em vez de recuar.

Acha que essa forma de lidar com a pressão é umas principais qualidades que o distinguiu como árbitro?

Acho que sim. Se me dissessem que só podia escolher uma qualidade para um árbitro de cadeira, qual era? Ver bem a bola. Não é fácil ver quando a bola é boa, dentro ou fora. A segunda qualidade, na minha opinião, é ser convincente. Uma coisa é ter um bom carro para vender. Outra coisa é vendê-lo. Portanto, eu posso ver bem a bola, mas se não vendo bem a minha decisão, ninguém acredita em mim. Depois há várias qualidades que são muito importantes. Há a gestão da pressão, ainda antes do conhecimento das regras. E eu diria ainda os valores. Os nossos valores muitas vezes são o que faz a diferença entre tomar uma boa ou uma má decisão.

Quer dar um exemplo disso?

Por exemplo, tratar toda a gente por igual. Tratar toda a gente da mesma maneira, na sua singularidade. Cada pessoa é singular. Mas há um tratamento que tem de ser igual para todos. Para mim sempre foi fundamental arbitrar dessa forma.

É também para manter essa equidistância que diz que não tem um jogador favorito?

Exatamente.

Mas não tem mesmo um jogador favorito?

Não, tenho um grupo de pessoas que eu admiro. Aliás, a verdade pura e dura é que eu admiro toda esta gente. (Faz um gesto a apontar para fora, para os courts onde decorrem os encontros da Billie Jean King Cup). Eu fico aqui a ver estes jogos, e adoro. Não preciso de ir a Wimbledon ou a Roland Garros para ficar a babar-me a ver jogos de ténis. Eu admiro todo este pessoal, admiro-os porque são sobredotados do meu desporto. Mas para mim sempre foi muito importante a pessoa e a igualdade no tratamento. A justiça. Eu sou uma pessoa de justiça, para mim os valores de justiça e igualdade são fundamentais.

Serena Williams? «Adorava falar sobre isso. Mas não posso»

Sei que não pode falar de jogadores ou casos concretos, por exemplo da questão com a Serena Williams no US Open de 2018…

Pois, não posso. O código de conduta que nós temos não nos permite fazer isso.

E pode falar da forma como viveu a pressão mediática nesses dias?

Não sei como falar disso sem falar do jogo, é difícil. Eu adorava falar sobre isso. Não tenho o mínimo problema. Mas não posso.

Teve algumas situações mais tensas com alguns jogadores. Acha que ficou com a imagem de ser um árbitro justicialista, muito restrito às regras?

Não sei, acho que isso é melhor perguntar a outras pessoas. Os árbitros não fazem as regras, estão no campo para aplicar as regras. Eu sou um árbitro que sempre tentou da melhor forma possível aplicar as regras. Com base na qualidade que eu tinha naquele momento. Que foi evoluindo, tornei-me muito melhor. Eu há 30 anos não tinha a qualidade que tinha no domingo passado. Sempre tive a ideia de aplicar as regras da forma mais justa possível, mas apliquei-as com base na minha capacidade, que foi evoluindo.

Falando genericamente, vive com tranquilidade com decisões que tenham sido polémicas, ou fica a pensar nisso muito tempo?

Sem falar de um jogo em particular, o que um árbitro quer é fazer o seu melhor, como qualquer ser humano que goste do seu trabalho. Eu tenho muito prazer em falar de arbitragem. E se calhar esta entrevista vai motivar outros jovens a fazer arbitragem. Eu estou aqui porque acho que faz parte do meu trabalho, partilhar. E acho que falta na nossa profissão essa partilha. Mas é importante que seja no respeito das regras que nos são impostas. Eu tive a sorte de durante 35 anos ter uma profissão que adorava. Não era só trabalho, era uma paixão. A arbitragem e tudo em volta da arbitragem foi uma paixão. E uma parte importante da minha vida. Portanto, se calhar a ficha ainda não caiu, voltando à sua pergunta de antes. Mas quando eu estou no campo não me interessam as consequências das coisas. Estão dois jogadores, duas jogadoras, duas equipas num jogo de pares, e eu quero que tudo o que aconteça ali seja o mais justo possível. As consequências, o que os outros pensam, não me interessam. Nem durante nem depois. Não quer dizer que eu não aprenda com os meus erros e com as situações.

O motivo para não ter redes sociais

Consegue reconhecer os seus erros?

Completamente. Houve muitas situações, muitas óbvias. Eu quero aprender com os meus erros. Um dos meus filhos está muito no mundo do rap, da música, faz vídeo e fotografia. E há um rapper francês que faleceu há uns meses e tem uma frase com que eu me identifico muito. Em português a tradução seria: «As pessoas inteligentes aprendem com os seus erros e as pessoas sábias aprendem com os erros dos outros.» Eu acredito nas duas coisas. A melhor forma de aprender com os nossos erros e os dos outros é assumi-los e tentar aprender. Mas para mim o mais importante sempre é dar o litro. E agir o mais próximo possível dos meus valores. Depois, as consequências, nós lidamos com elas. As consequências interessam-me para aprender, mas não em relação ao que possa acontecer.

Porque é que decidiu não ter redes sociais?

A maior parte dos meus colegas tem. Mas eu sou um bocado impulsivo e teria tendência para escrever coisas de que me podia arrepender. Às vezes há comentários muito violentos. Tive colegas que receberam ameaças de morte.

«O papel do árbitro hoje é menos relevante»

Acha que a tendência, com as novas tecnologias, é para que o papel do árbitro passe a ser menos relevante?

O papel do árbitro hoje é menos relevante. Continua a ser relevante, mas é menos. Sobretudo nos jogos que utilizam a arbitragem eletrónica e a arbitragem que se chama ELC (Eletronic Line-Calling) Live. Aí não há juízes de linha. Todas as chamadas de bola dentro/bola fora são feitas automaticamente pelo sistema eletrónico. 80 por cento dos problemas de arbitragem são gerados por dentro/fora. Portanto, quer dizer que há uma grande parte de relevância do árbitro que deixa de existir. Mas continua a haver uma parte importante, o árbitro continua a ser uma parte importante dos jogos.

Disse que um dos seus ídolos era o John McEnroe. Nunca o arbitrou, mas devia ser o tipo de jogador mais difícil para um árbitro, não?

Era um jogador muitíssimo desafiante. Daqueles jogadores mais mediáticos, era o mais desafiante para os árbitros. Mas não era o único.

(Volta a interromper, para procurar no telemóvel a imagem com Olivia Newton John na Austrália. Encontra)

Está aqui. A minha primeira final. São momentos inesquecíveis. O ténis fez-me viver momentos que nunca mais esquecerei. Sete Jogos Olímpicos, sete cerimónias de abertura – seis porque infelizmente no Japão não pudemos estar… O mundo inteiro a ver aquilo e nós estamos ali nas bancadas. É uma loucura. Foi tudo graças ao ténis. Para um miúdo português, retornado, classe média, média baixa quase, o ténis deu-me coisas fantásticas.

Antes desses momentos pensava sempre nisso, no privilégio que é?

Sim, no enorme reconhecimento de poder estar ali a viver aquele momento.

Pensa vir a colaborar com o ténis português? Estava a dizer que gostava de ser um exemplo para futuros árbitros.

Claramente. Eu adoro a formação, o coaching e formação de árbitros. Gosto muito e tive bastante sucesso também nisso, sem falsa modéstia. É uma parte de que gosto muito. Acho que faz parte de ser bom formador dar o exemplo.

Vai continuar a trabalhar como juiz-árbitro. Em termos de rotina a sua vida não vai mudar assim tanto, ou vai?

Eu já era juiz-árbitro há muitos anos e vou continuar. Tenho outro projeto a que vou tentar dedicar um pouco mais de tempo. Vou trabalhar na semana antes de Roland Garros no torneio de Lyon, onde moro, sou juiz-árbitro desse torneio. Depois tenho umas semanitas sem trabalhar, e é repensar as coisas.

Pode dizer que projeto é esse?

Não. (Risos) Bem, a minha nova paixão, junto ao ténis, é o ciclismo. O ciclismo amador, não profissional. É um projeto à volta do ciclismo amador. Eu não conheço nada de ciclismo, mas ando de bicicleta há dois anos, deixei de correr por causa dos joelhos e agora dediquei-me cada vez mais ao ciclismo.

Quanto tempo lhe ocupavam até aqui os torneios de ténis?

Durante muitos anos, juntando tudo, 35 semanas por ano. Agora andava à volta de 25. Agora vão ser talvez 20 semanas.

«A cadeira é um sítio espetacular para ver o jogo, mas nem sempre confortável»

A cadeira é o sítio de onde se vê melhor o jogo?

Sim. Está dentro do campo, não das linhas do jogo, mas dentro do campo. É um sítio espetacular para ver o jogo, mas nem sempre confortável.

Do que é que vai ter mais saudades?

Não sei se vou ter saudades de alguma coisa. Eu sou uma pessoa um bocado idealista. Nem sempre foi assim, mas meti na cabeça que vivo o presente. Em casa tenho muitos troféus do Grand Slam, em Roland Garros recebemos sempre um troféu em prata. Têm muito valor, logicamente. Mas não os tenho expostos. Eu gosto de viver o presente. Gosto de ter as minhas ideias e seguir por elas. Sou vegano porque acho que o nosso modo de vida é insustentável e é a minha contribuição. Eu adorava carne e peixe, mas como deixei de me identificar com isso, não como. Vivo o presente. Se tiver saudades, lidarei com elas.

Se tivesse de dar um conselho a um miúdo que esteja a decidir se quer ou não ser árbitro, o que é que lhe diria?

Para seguir o seu instinto e os seus sonhos. O resto arranja-se. Eu acho que as coisas acabam por se equilibrar na grande maioria dos casos e a pessoa acaba por encontrar um caminho.