Partiam da Tapadinha na véspera, pelas 15 horas. Não havia headphones XXL, tatuagens tribais ou brincos repletos de brilhantes. «Vestíamos o fatinho de treino do clube e lá íamos, no autocarro velhote para o Porto, a jogar cartas ou dominó. Demorávamos para aí cinco horas na altura».

A altura era 1971. Joaquim Carvalho, o lendário Carvalho, defendia na última época de uma carreira mágica a baliza do Atlético Clube de Portugal. Nesse fim-de-semana de outubro, o histórico clube lisboeta deslocava-se às Antas para defrontar o FC Porto.

Antes, muito antes de se falar do milagre de David, já o Atlético vergava os azuis e brancos. Carvalho fez «uma exibição extraordinária», mas Raimundo foi o grande herói, ao marcar os três golos dos lisboetas. «Ganhámos 3-1, sim senhor, e nem queira saber como foi no final», lembra o decano guarda-redes ao Maisfutebol.

«Mal o árbitro acabou o jogo, os adeptos do FC Porto começaram a assobiar a equipa deles. No início tive medo, pensei que ia sobrar para nós. Mas não, pelo contrário. A plateia exigiu que toda a equipa do Atlético desse uma volta ao campo, para receber vivas e aplausos».

Outros tempos, outra forma de olhar para o futebol. «Surpreendemos tudo e todos. Os jornais do dia a seguir traziam o Atlético na primeira página, uma coisa inacreditável».

«Dormimos numa residencial, fiquei com o melhor quarto»

Os 42 anos de distância roubam pequenos detalhes à memória de Carvalho, mas o antigo guarda-redes retém pormenores deliciosos. Vamos a mais um.

«Estávamos a ganhar por dois a zero e o Porto reduziu [por Flávio]. O ponta-de-lança deles era um moço muito bom, o melhor da equipa. Sofri o golo e fui logo a correr ter com os meus colegas da defesa. Chamei-os e disse: esqueçam os outros, mas agarrem, parem de qualquer maneira o Flávio. Só assim vamos ganhar isto».

Resultou. O Atlético voltaria a marcar por mais uma vez. As Antas incendiaram-se. «Isto teve muito mais valor do que esse jogo de 2007. Era para o campeonato, o FC Porto jogou com a melhor equipa e nós, coitados, nem dormir bem tínhamos conseguido».

Joaquim Carvalho, num tom simples, concretiza a afirmação.

«Não havia dinheiro para hotéis. Jantámos já no Porto e fomos para uma residencial. Jeitosinha, sim senhor, mas sem ponta de luxo. E eu até era o mais afortunado. Mal chegávamos a um sítio os dirigentes diziam logo: o melhor quarto é para o senhor Carvalho».

O senhor Carvalho vinha de 12 épocas na baliza do Sporting, de vários títulos e seis internacionalizações por Portugal.

«Eu recusava ser privilegiado. Nunca tinha sido rico e nunca fui depois disso. Eles insistiam, insistiam, para eu não desmotivar. E eu lá dormia melhor do que os outros», confessa, antes de uma genuína gargalhada.

«Já estava decidido a reformar-me, mas lá fui para o Atlético»

A conversa vai longa e as memórias teimam em saltar sem aviso. Carvalho explica, em jeito de despedida, por que aceitou jogar no Atlético, já com 34 anos.

«Já estava descansado em casa, convencido a reformar-me, e ligaram-me do Sporting», relata o histórico guarda-redes.

«Dizem-me eles: Carvalho, tens de ir para o Atlético. Nós queremos um jogador deles [Baltasar], mas o Benfica também anda atrás dele. O presidente do Atlético diz que nos vende com uma condição: ter-te na baliza».

E lá foi o senhor Carvalho. «Mesmo já não sendo do Sporting continuei a servi-lo. E fiz bem. Tive um ano maravilhoso na Tapadinha, acabámos no décimo lugar. E ainda ganhámos ao FC Porto».

Qual David, qual quê. Milagres, no futebol, há muitos. Como este de 1971.