Viajante do tempo, coriáceo sobrevivente. Um século de vida, recordações sem fim. Francisco Varallo é o testemunho vivo do Mundial de 1930, o primeiro organizado sob a égide da FIFA. O peso da idade levou-lhe a audição e a desenvoltura física. A lucidez, essa, permanece abrigada à sombra de 100 anos bem vividos e devidamente celebrados em Fevereiro.

Assim se preparava um Mundial há oito décadas

Em entrevista ao Maisfutebol, este tesouro secular do mundo do futebol emociona-se várias vezes. A saudade, lancinante companheira, ainda atraiçoa aquele coração desgastado pela erosão dos dias. «1930, é verdade. Há 80 anos representei a minha pátria no Campeonato do Mundo. Ainda tenho a camisola da Argentina aqui guardada. O resto dei tudo.»

Um bisneto para a história do Boca Juniors

As perguntas são desnecessárias. Don Varallo sabe o que o jornalista pretende. Em vez de respostas, escutámos uma história. De encantar, pois então. «A maior dor da minha vida é essa final perdida para os uruguaios (4-2). Nunca recuperei da decepção. Vou morrer sem aceitar a derrota. Chorei muito, como chorei!»

«Tivemos três lesionados e não havia substituições»

Em escassos segundos estamos no Estádio Centenário. 90 mil pessoas a assar em blazers de linho, sob a inclemência do sol de Montevideu. Francisco Varallo é um perfeito condutor de palavras, mestre na arte da descrição. Contumaz, por vezes travesso, expele veneno sobre a recordação.

«A maior culpa foi nossa. Acomodámo-nos! Estávamos a vencer 1-2 ao intervalo. À ida para os balneários atiraram-nos pedras, enxovalharam-nos com insultos, fomos tratados como prisioneiros de Guerra. Sabe porquê? O sorteio ditou que a bola do jogo fosse nossa e não do Uruguai. Era assim na altura», confidencia, em sussurro, enquanto vasculha o passado.

A boca de Don Varallo está seca. «Agora canso-me muito», desculpa-se, quase envergonhado. «Mas, dizia-lhe que fomos anjinhos. Fomos. E não tivemos sorte nenhuma também. Na segunda parte tivemos três lesionados. Eu fui um deles. Fiz um remate à barra e senti o joelho a estalar. Gritei como um cachopo. Não havia substituições, veja bem, e aguentei até ao fim. Aguentámos todos: eu, o Monti e o Evaristo.»

«As equipas da Europa navegaram duas semanas pelo Atlântico»

Atravessar o Rio de la Plata era, por si só, uma aventura. Buenos Aires-Montevideu de barco. Horas de enjoos pérfidos, vitaminas soltas pela proa de uma casca de noz. Chegar ao Mundial era um passeio pelo abismo. Não havia equipas cediças, reluzentes, apenas corpos bolorentos, a postular descanso.

«Cheguei ao Uruguai esgotado. Mas a Argentina até foi das mais beneficiadas. As quatro selecções da Europa navegaram duas semanas pelo Atlântico num veleiro», atira numa gargalhada catártica. O próprio Varallo tem noção da amplitude histórica que liga 1930 a 2010.

«É tudo diferente, eu sei. Mas atenção: a FIFA pode apostar na tecnologia, mudar regras e comportamentos. Mas não consegue, isso garanto, mudar a essência do jogo. O futebol é para ser jogado entre duas equipas de 11 jogadores e o único objectivo é o golo. O resto são detalhes.»

Há alguém que conteste a erudição destes 100 anos?

Uruguai-Argentina (1930):