Jorge Simão iniciou a época 2014/15 no comando técnico do Mafra, mas em março, quando lutava pela subida à II Liga, foi convidado para regressar ao Belenenses, agora como treinador principal. Uma proposta que «podia ser um presente envenenado», mas ainda assim «irrecusável», diz o próprio. Em entrevista ao Maisfutebol o técnico assume que encarou a proposta como uma oportunidade para afirmar-se na alta roda do futebol português. Garantido o apuramento europeu com o Belenenses, Jorge Simão sente que foi uma aposta ganha.
 
Já passaram alguns dias do apuramento europeu do Belenenses. Agora com outra distância o feito ganha contornos diferentes, ou já existia uma noção clara do que representava?
Em conversa com outro treinador até disse que ainda não tinha bem noção das coisas. O próprio percurso do Belenenses desde a última qualificação europeia faz com que o feito tenha uma dimensão ainda maior. Há três anos o Belenenses corria o sério risco de cair na 2ª Divisão B, agora Campeonato Nacional de Seniores. A preparação da época e o projeto previa apenas a luta pela permanência, e chegar ao fim da época com o apuramento europeu é algo ímpar, que merece o devido destaque. Foi bom o que fizemos, foi fantástica esta reta final, mas confesso que ainda tenho dificuldade em respirar fundo e pensar que o Belenenses está na Europa outra vez. Isto é um projeto que começou há três anos, com a entrada de Rui Pedro Soares e a compra da SAD, e que tinha objetivos perfeitamente datados e definidos. Um projeto de meia dúzia de anos, e têm sido dados passos largos para que esses objetivos seja alcançados de uma forma até precoce. E este foi claramente um deles. Este patamar estava mais distante.

 
Quando é que se pensava alcançar uma qualificação europeia?
Pelo que conheço dos objetivos e do projeto que foi apresentado, a previsão era cinco, seis ou sete anos. Sei que o presidente quer também colocar o Belenenses a lutar pela Liga dos Campeões, mas este foi um passo decisivo também para saltar etapas e começar a galgar caminho rumo a um dos grandes objetivos desta SAD, que é o Belenenses europeu.
 
Conseguir a qualificação europeia com o plantel mais português da Liga dá um sabor especial?
Não diria um sabor especial, mas é um facto digno de registo. O Belenenses acaba a época com um estrangeiro, o Matt Jones, que até está cá há muitos anos, e não sei se pode ser considerado estrangeiro. E o Matt Jones não foi utilizado em nenhum jogo, por isso o Belenenses só utilizava portugueses. Não direi que o sabor é outro, pois um jogador é bom, independentemente da nacionalidade, mas é algo de destaque para quem quer defender o produto nacional, e usar isso até como bandeira promocional do produto nacional.

 
Isto passa a ideia também que o projeto está no rumo certo?
Não tive oportunidade de perguntar à administração se tem o objetivo de caminhar para um Belenenses Europeu só com portugueses, ou se foi só uma coincidência. O clube não deve ficar refém disso. Deve ter a preocupação de aproveitar o produto nacional, de fazer uma boa prospeção, ter uma boa base de recrutamento. Um bom jogador é um bom jogador, independentemente da nacionalidade.
 
Para além da qualificação europeia do Belenenses, fica também associado à subida do Mafra à II Liga. Há um ano isto não passava de um sonho?
Nem sonhava com isto. Antes do último jogo, em Barcelos, comentámos isso entre a equipa técnia. Há um ano estávamos a defrontar o FC Porto B, pelo Atlético. E agora íamos disputar o apuramento para a Liga Europa. Nem sequer conseguia sonhar com isto.
 
Foi um ano de montanha-russa? Não conseguiu evitar a descida com o Atlético (evitada pelo alargamento das competições profissionais), e agora a promoção com o Mafra e a qualificação europeia com o Belenenses?

Foi. Mas o futebol é fértil nestas coisas. Na maior parte das vezes não corre assim tão bem. Mas este ano foi fantástico por tudo isso, por ficar associado a dois projetos de sucesso. Mais do que o meu mérito, isto tem a ver com o estar perto dos melhores. Isso permite-nos sermos melhores, e termos o proveito dessa combinação de factores.
 
Chegou a dizer que era uma situação que «tinha tudo para correr mal». Implicava substituir um treinador que não saiu por causa dos resultados, com um contrato válido até final da época e deixar o Mafra, que estava em primeiro lugar no CNS. Ainda assim era um convite irrecusável na perspetiva de afirmação?
Era. Aos meus olhos era irrecusável. Chegar ao Belenenses como treinador principal era uma oportunidade irrecusável, mesmo nestas condições: a nove jogos do fim, com o objetivo principal assegurado. Podia facilmente tornar-se um presente envenenado. Tinha perfeita noção dos riscos que estava a correr, e continuo a dizer que tinha tudo para correr mal. Mas mesmo assim sabia que era irrecusável. Aquilo que eu procurava era afirmar-me. Não o escondo. Muita gente não me conhece...“Quem é este rapazola que vem da 2ª B?”. Mas eu não nasci de geração espontânea. Já levo alguns anos disto, e sempre no sentido de me preparar para dar o passo para treinador principal. E por isso não me vejo a voltar às funções que já tive. Fiz o meu percurso, consolidei as minhas ideias. Não me estou a ver voltar atrás. Queria afirmar-me, no sentido de ver se era capaz. Era uma oportunidade que eu não podia recusar. Tinha a secreta esperança de voltar ao Belenenses. Não tão cedo, como é claro, mas sabia que as pessoas iam estar atentas, que podia fazer um percurso paralelo, e até consolidar a imagem de treinador principal. Não podia deixar fugir esta oportunidade. Apostei tudo e felizmente as coisas correram bem, agora espero tirar o proveito desta minha afirmação na Liga.

 
Foi uma oportunidade que surgiu com um ano e meio de atraso? Contava substituir Mitchell van der Gaag quando este teve de afastar-se por razões de saúde?
Já me fizeram essa pergunta algumas vezes, e eu nunca o disse. Nunca falei disso na altura, e mais desajustado parece-me falar agora. Já passaram dois anos, faz parte da história. Estava preparado para todos os cenários naquele momento, e não há muito mais a dizer.
 
Mas foi uma motivação para este regresso?
Não, não vi como motivação. Fiz um percurso como jogador, fiz um percurso como treinador-adjunto. Trabalhei com vários treinadores e não acredito que algum deles consiga apontar uma situação qualquer em que tenha sido pouco leal. Com todos eles manifestei a minha intenção de, um dia, mais tarde, tornar-me treinador principal. Nunca o escondi. Fui sempre muito frontal e fui leal. Não acredito que alguém me possa apontar o dedo. Aconteceu quando tinha de acontecer.
 
Houve oportunidade para falar com o Lito, no momento da sucessão?
Não. Não conhecia o Lito. A única vez que me cruzei com ele foi num jogo-treino entre o Mafra e o Belenenses, na pré-época. Cumprimentei-o, como a qualquer colega de profissão, mas não tínhamos uma relação mais próxima.

 
Qual foi o segredo para agarrar o grupo? Uma coisa é assumir o comando de uma equipa que está a ter maus resultados, mas aqui o cenário era bem diferente...
Julguei fundamental apresentar-me, dizendo aquilo que podiam esperar de mim. E o que era isso? Frontalidade, muito rigor e coerência nas comunicações, e qualidade no trabalho. Apesar de já terem cumprido o objetivo, não podia exisitr uma fase de descompressão e desmobilização. Nesse sentido lançar a cenoura, por assim dizer, para que toda a gente lutasse por um objetivo comum, foi decisivo. Dizer isso a uma distância pontual que não fosse viável teria sido ainda pior, mas naquele momento estávamos na luta com mais três ou quatro equipas. Seria ridículo não aproveitar a oportunidade de lutar pela Liga Europa. Tive a oportunidade de almoçar com os capitães de equipa e falámos sobre isso. Chegámos a conclusão que íamos assumir todos essa luta, e eu publicamente, com todos os riscos associados a isso. Era o treinador que vinha da 2ª B que já estava a cantar de galo, mas não havia nada a perder.


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