«River ou Boca?»

A questão, simples e transversal, não se coloca apenas na gigante metrópole de Buenos Aires. Por toda a Argentina se mede a simpatia e o fanatismo pelos dois clubes mais populares do país, que este sábado se enfrentam na grande decisão da Taça Libertadores (20 horas, em Portugal Continental).

«Que possibilidades há de que uma final continental seja um clássico de bairro?», exclamava um recente vídeo promocional sobre a última final a duas mãos da grande competição de clubes da América do Sul.  E a verdade é que, por estes dias, a questão sobre ser River ou Boca se coloca com ainda maior obstinação.

No entanto, é possível ser do River Plate e do Boca Juniors ao mesmo tempo. Basta alinhar as coordenadas certas e encontrar Bell Ville, uma pequena localidade de 35 mil habitantes a meio caminho entre Córdoba e Rosário – as duas maiores cidades do país, depois da capital.

Aqui, a cisão entre os dois colossos do futebol sul-americano é uma espécie de fusão… desde há 95 anos.

Na terra de Kempes e das bolas de futebol

Autointitulada capital da bola de futebol, por ali em 1931 se ter inventado a primeira bola com câmara de ar e por continuar a sediar nos dias de hoje fábricas que as produzem, Bell Ville tem outras peculiaridades. Como a de ser terra natal de Mario Kempes, herói do Mundial de 1978, que a Argentina acolheu e conquistou. Ou o facto de acolher um dos maiores fenómenos do futebol no país das pampas: nesta cidade da província de Córdoba o mesmo adepto pode torcer por River e Boca ao mesmo tempo.

O Estádio de Bochas, casa do River de Bell Ville

Ser Xeneize e Milllonario apoiando a mesma equipa? Sem tirar nem pôr, explica René Mangini, de 64 anos, comerciante de carnes que se apresenta assim do outro lado do telefone: «Sou o presidente do River com camisola do Boca…»

O Club Atletico Bel Ville River Plate veste de azul e amarelo. É este o compromisso estabelecido desde a fundação, há quase um século, como explica Mangini ao Maisfutebol.

O presidente do River de Bell Ville René Mangini (primeiro a contar da esquerda)

«Não há atas nem nada, mas no ano de 1923, aquando da fundação, já havia por cá muitos adeptos dos dois clubes, tal como hoje. Como não se entendiam sobre a designação e as cores a escolher, colocaram num chapéu dois papéis com o nome do River Plate e do Boca Juniors. Adotaríamos o nome do que saísse primeiro e a camisola do outro. Desde o início que é assim e pelos estatutos não se pode modificar», conta o dirigente.

Herança xeneize, mas orgulho pelo River

René Mangini diz «Sou do Boca, mas com orgulho presidente do River», mas convive com adeptos do rival tanto na direção como na família.

«Tenho três filhos: dois são do Boca e um do River. Sou xeneize (apodo dos adeptos do Boca, que quer dizer genovês em lígure) por herança. O meu pai também era. Ia à Bombonera e aquilo é um ambiente único. “La cancha de Boca no tiembla, late”, como se diz por aqui», explica o presidente do River de Bell Ville, que vai ver em casa o superclássico de sábado, que decidirá o título da Libertadores:

«Dantes juntávamo-nos na sede, mas agora o espaço passou a ser um restaurante e cada um vê o jogo em sua casa. Prefiro ver o jogo tranquilo. Não sou fanático, mas se o Boca ganhar, irei para a rua festejar, claro. Os duas hinchadas aqui são equilibradas e convivemos sem qualquer problema. Umas dez mil pessoas irão festejar para o centro da cidade, ganhe quem ganhar. Se o Boca perder… Bem, na segunda-feira tenho de ir para o trabalho com tampões nos ouvidos para não escutar as brincadeiras e piadas da gente do River…»

«Nos estatutos não se toca»

Mangini preside a um clube eclético, com mais de uma dezena de modalidades, mas que tem no futebol o seu principal foco. São mais de 450 atletas que praticam desporto neste clube, cuja equipa principal de futebol compete na Liga Bellvillense.

O River vive na sombra do Clube Bell, a maior instituição desportiva da cidade, mas tornou-se conhecido pela história quase centenária de juntar sob o mesmo teto os dois mais populares clubes do futebol argentino.

Equipa principal do River de Bell Ville

Esse compromisso é inegociável, salienta René, recordando que no tempo dos históricos presidentes Antonio Vespucio Liberti e Alberto José Armando – que dão nome oficial à Bombonera e ao Monumental – River Plate e Boca Juniors tentaram à vez eliminar as referências ao rival:

«O Boca queria que mudássemos o nome. O River queria que mudássemos o equipamento. Ofereciam dinheiro para mudar equipamentos de todas as modalidades, mas nos estatutos está escrito que não se toca em nada e os sócios reiteraram isso mesmo numa assembleia-geral. Nunca se permitiu qualquer alteração. Vamos morrer sendo assim: River e Boca.»

Esse é o grande património deste modesto clube de Bell Ville. Afinal, que outra possibilidade haveria de conhecer na Argentina haver um River que também é Boca?

[artigo originalmente publicado às 23h50 de 22 de novembro]