Benfica e Rio Ave frente a frente e o título de campeão em jogo. Esta tem sido uma história insistentemente repetida nos últimos anos e por duas vezes decidiu o campeonato. Aí está de novo, neste domingo, para a penúltima jornada da Liga, naquele que pode ser o primeiro «match point» para o título. Se o Benfica fizer em Vila do Conde melhor resultado do que o FC Porto, que joga antes em casa do Nacional, é desde já campeão. Um triunfo do dragão adia a decisão, mas o cenário está sobre a mesa, uma vez mais. Na última década, Benfica e Rio Ave defrontaram-se por seis vezes nas últimas cinco jornadas da Liga. E dois desses jogos decidiram o título: o primeiro a favor do Benfica, em 2010, o segundo para o FC Porto, dois anos mais tarde. Gaspar, antigo defesa que foi capitão do Rio Ave, estava em campo em ambos esses jogos. E conta ao Maisfutebol como se vivem por dentro esses duelos, do lado de quem se vê protagonista de uma decisão que não é sua.

O primeiro foi há nove anos, quase dia por dia. 9 de maio de 2010, última jornada do campeonato. O Benfica, na primeira época de Jorge Jesus, estava à beira de conquistar o seu primeiro título em cinco anos. Chegava a essa decisão na Luz com mais três pontos do que o Sp. Braga, que tinha vantagem no confronto direto e jogava à mesma hora, por sinal, na Choupana.

«Era impossível falarmos uns com os outros»

«O Sp. Braga, que era quem estava a lutar pelo título com o Benfica, jogava com o Nacional fora. O Benfica tinha que fazer o mesmo resultado que o Braga», recorda Gaspar, ainda com a memória desse dia bem fresca. A memória do ambiente da Luz, antes de mais. «Era impossível falarmos uns com os outros. Mesmo a um metro não conseguíamos ouvir-nos. Por causa do ambiente, do barulho dos adeptos, dos cânticos», diz: «Sabe quando há um barulho tão grande que até faz um zumbido no ouvido? A certa altura estava com o zumbido no ouvido.»

Começou bem antes do jogo. «Tivemos algumas dificuldades em fazer o aquecimento, estávamos junto à linha lateral e havia tantos jornalistas que não conseguíamos mexer-nos. Estávamos a aquecer fora, na linha lateral. Normalmente antes de irmos para dentro do campo fazer o complemento do aquecimento, fazíamos na lateral, para poupar o relvado. «Acho que até mandei um encontrão a um jornalista, um fotógrafo», ri-se Gaspar: «Acredito que era um espectáculo fabuloso de assistir, mas eu estava a trabalhar…»

Em campo sentia-se a enorme tensão, num jogo que teve muito que contar. «O Wires foi expulso aos 10 segundos de jogo. Estou a exagerar, mas foi logo no início», brinca Gaspar. Foi na verdade aos 11 minutos, já depois de Cardozo ter começado a lançar os foguetes da festa, com o 1-0 aos três minutos.

Na Choupana, o Nacional marcou no início da segunda parte e provocou a segunda explosão de alegria na Luz. «Quando houve o golo do Nacional nós no campo percebemos logo. Toda a gente gritou golo e nós é que estávamos com a bola no nosso meio-campo…», sorri Gaspar.

Mas o Sp. Braga empatou pouco depois. E na Luz, aos 72 minutos, Ricardo Chaves fez de bola parada o 1-1 para o Rio Ave. A tensão na Luz era de chumbo. «De um momento para o outro conseguia ouvir os meus filhos lá em cima no Porto... Até se ouviam as moscas», sorri Gaspar: «Lembro-me do silêncio quando foi o empate. Das caras de alguns jogadores do Benfica, não digo de desespero mas de alguma aflição.»

A pressão e as «notícias a circular»

A pressão do jogo era completamente diferente para as duas equipas, quando o Rio Ave chegava à Luz na 11ª posição do campeonato. «Falo por mim, estava a encarar o jogo tranquilamente. O Benfica é que precisava do resultado para ser campeão», diz Gaspar, reconhecendo que toda a envolvência de um jogo decisivo mexe com os jogadores, mas defendendo que não faz tanta diferença assim para quem está do outro lado.

«O Benfica podia ser campeão ao fim de vários anos no seu estádio, por muito que se possa dizer mexe sempre com qualquer pessoa. Mas nós temos a nossa preocupação enquanto clube e enquanto equipa. Não era nada connosco, o que tínhamos a ganhar eram três pontos», diz. E além disso, diz, há sempre motivação adicional para jogos desta dimensão: «Os jogos contra os grandes são sempre diferentes. São jogos mais mediáticos, jogos que têm mais pessoas no estádio. É tudo importante, se aparecer uma minhoca no campo é assunto. São os jogos que toda a gente gosta de jogar. E há aquela valorização como jogador que vem de um bom jogo e um bom resultado num jogo destes.»

Também há, sempre, muito ruído antes de a bola começar a rolar. Foi assim em 2010. «Lembro-me bem do mediatismo, das notícias a circular», diz Gaspar. Com consequências dessa vez, recorda: «O Fábio Faria era um dos nossos centrais, mas já tinha tudo acertado para jogar no Benfica e acabou até por não ser convocado, para resguardar o jogador.»

Esse dia acabou em festa para o Benfica. Cardozo ainda bisou, as águias ganharam e no fim nem precisavam, porque o Sp. Braga acabou mesmo por empatar. O Benfica era campeão.

Foi bem diferente dois anos mais tarde.

29 de abril de 2012, antepenúltima jornada da Liga. O Benfica chegava a Vila do Conde a sete pontos do FC Porto, que tinha vencido na véspera nos Barreiros. Só uma vitória adiaria desde logo a festa portista. Não aconteceu, o jogo terminou 2-2 e quando soou o apito final o FC Porto era campeão.

«Tanto num jogo como noutro era exatamente a mesma coisa, não estávamos minimamente preocupados com as circunstâncias», conta Gaspar. «Mas esse jogo de 2012 foi totalmente diferente. O Benfica estava com aquela pressão de ter de ganhar para continuar na luta. Era uma equipa com a pressão de querer ganhar e encontrou pela frente uma equipa que não tinha muito a perder. Não se perde três pontos se a gente não os tem, temos é de tentar ganhá-los.»

De 2012 para 2019, o clique que faz a diferença

Atsu colocou o Rio Ave na frente logo aos 9 minutos, Nolito e Cardozo viraram as contas ainda na primeira parte, mas aos 51 minutos Yazalde igualou o jogo. «A certa altura notava-se o baixar dos braços dos jogadores do Benfica», recorda Gaspar, explicando a ideia com um exemplo bem mais recente. «É como neste último jogo do Rio Ave com o FC Porto. A certa altura percebe-se que se o Rio Ave faz o golo fica por cima. Não consigo explicar, isso sente-se. Para quem vê de fora não, mas lá dentro tem-se outra perceção. Não é só por demérito do adversário. Há algo que faz com que a equipa se galvanize, seja um grito de alguém, uma defesa do guarda-redes, algo que faz com que haja um clique. Acontece tanta coisa dentro de campo que pode fazer a diferença.»

Na atual edição da Liga o Rio Ave já foi protagonista nesta reta final da luta pelo título, com esse empate frente ao FC Porto há duas jornadas. Pode voltar a sê-lo, até porque esta época ainda pode chegar ao jogo com o Benfica na luta por um lugar europeu, quando está a quatro pontos do V. Guimarães, sexto, e num cenário de indefinição sobre o licenciamento do Moreirense, quinto.

«Eles têm a pressão normal do jogo, que é bom para o espectáculo. E têm um objetivo para tentar alcançar, vão encarar o jogo como tal. Exactamente como contra o FC Porto. Em seis, sete minutos conseguiram um ponto que é bom para o clube, é de festejar, mas pelo que significa para o Rio Ave», diz Gaspar.

Ainda assim, o antigo central do Rio Ave acha que este campeonato não fugirá ao Benfica. «Não acredito que o Benfica perca o campeonato. Não está muito longe o minuto 92, quando perdeu o título em 2013. Será difícil o Benfica facilitar outra vez. Agora, no domingo há várias questões, resta ver se o Rio Ave, que tem vindo a crescer, pode fazer alguma mossa, ou se vamos ter um Benfica galvanizado.»

Vai cair o pano sobre um campeonato que não merece muitos elogios a Gaspar. «De modo geral, tirando meia dúzia de jogos, foi um campeonato muito pobre. E muito rico em polémicas e riquíssimo em protagonistas que nada têm a ver com futebol. Para isso contribuiu muita coisa, um FC Porto limitado até pelas finanças, um Benfica que mesmo agora não acho que esteja a praticar grande futebol», diz: «O FC Porto perde o campeonato por culpa própria. Não estou a desvalorizar a vitória do Benfica. O campeonato é ganho obviamente com mérito do Benfica, mas com demérito do FC Porto. Nem sempre quem fica à frente tem a melhor equipa. Tem a melhor conjugação de circunstâncias, algo desse género. Em 2013 foi ao contrário, o Benfica acabou por perder o campeonato mas foi mais equipa.»

Seja como for, o momento da decisão é sempre enorme. Gaspar, que deixou o futebol e trabalha em metalomecânica mas manteve um futuro de treinador como objetivo, jogou muito futebol. Tem uma carreira de mais de 500 jogos, acima dos 300 na Liga, e também foi campeão - com o FC Porto, em 1998. Não há nada, diz, como jogar por um título. E ganhá-lo. «Fica para sempre guardado na memória de um jogador que passou por isso. Não há palavras para descrever», vai dizendo, a recordar esse triunfo de 1998 com o dragão ao peito: «Lembro-me de estarmos na varanda da Câmara Municipal e não conseguir ver o fim da avenida. Não conseguir ver o asfalto por baixo daquele mar de pessoas. O último jogo foi na Madeira e demorámos uma eternidade a fazer o caminho desde o aeroporto. São momentos inesquecíveis, que vou guardar até ser velhinho.»