O Maisfutebol desafiou os treinadores portugueses que trabalham no estrangeiro, em vários pontos do planeta, a relatar as suas experiências para os nossos leitores. São as crónicas Made in Portugal:

Críticas ou sugestões? Escreva-nos para madein@iol.pt

Leia a apresentação de Manuel Madureira

MANUEL MADUREIRA, DIABLES NOIRS (Rep. Congo)

«Sonhos, realidade, utopia...

São já 42 anos ligado ao futebol. 20 como jogador e 22 como treinador, dos quais 10 em Portugal e 12 além-fronteiras.

Portugal, Inglaterra, Tunísia, Argélia, Marrocos, Arábia Saudita e Republica do Congo em Brazzaville são marcos de passagem desta aventura agridoce.

Culturas e identidades que nada têm que ver com a nossa realidade Portuguesa. Qual universidade, qual especialidade... Não há melhor escola ou formação do que o dia-a-dia junto destas comunidades sociais e desportivas.

Destaco que o treinador nestas andanças é muito mais do que treinador de futebol. É o gestor de todos os recursos humanos, é o financeiro criterioso do clube, tendo em conta as enormes dificuldades financeiras.

É muitas vezes massagista e médico, pois estes povos vivem envolvidos com as magias negras e o futebol não vive com fantasias deste tipo. Ou será que vive???

Nesta época agora terminada, na equipa onde estive, os DIABLES NOIRS de Brazzaville, vivi uma experiência ímpar, enigmática e paradigmática, quando jogámos a primeira-mão da Champions League Africana.

A dada altura no interior do balneário, este tornou-se numa zona acizentada, devido ao fumo das velas de diversas cores acesas, especialmente pretas, vermelhas e brancas. Havia um forte odor a cera queimada, fazendo recordar o queimador do Santuário de Fátima.

Sons de rolas brancas e galos pretos, salpicos de água fresca espalhados pelo mestre das magias negras. O homem circulava livre na zona VIP e num vestiário amplo e com condições extremamente precárias.

Em todos os jogos anteriormente efetuados jamais havia ocorrido algo semelhante, o que naturalmente hipotecou a minha autonomia como treinador.

Nesse dia, como de resto em todos os outros dias de competição, chegámos ao estádio duas horas antes do jogo. Tempo mais do que suficiente para tudo se fazer, cumprindo rigorosamente os rituais de cada jogo.

Guardei a palestra - vulgo reunião técnica antes do jogo - para o vestiário.

Foi impossível atrair a atenção dos jogadores. Estes mantiveram-se «vidrados» nas rezas do feiticeiro Tulangue e nos rituais relacionados com os animais já aqui citados.

Foi tempo de esfregarem pomadas milagrosas, de se untarem com sangue de galo preto, de se salpicarem com água benzida e de se defumarem com velas e incensos.

Jamais tinha assistido ou vivido algo semelhante. Esta foi a minha primeira lição a sério sobre superstições.

Incrédulo, outra alternativa não me restou do que fixar os esquemas de jogo no quadro e depois, já dentro do campo, ir alertando os jogadores para os objetivos do jogo, para a estratégia e recordar o que foi amplamente trabalhado durante a semana.

Ainda esbocei uma tentativa para terminar com a ação que se desenrolava, mas fui prontamente alertado pelos meus treinadores adjuntos, Antoine e Massamba Clement, que não deveria interferir com o ritual, pois se o fizesse e se perdesse o jogo, teria problemas graves.

Foi-me dito que teria de me adaptar à cultura Africana se quisesse ter sucesso e ser respeitado. Caso contrário os meus dias estariam prematuramente contados.

Deixo aqui a passagem deste episódio macabro para alertar todos aqueles que estejam a trabalhar fora de Portugal, bem como outros que anseiem vir a fazê-lo. Ser treinador de futebol vai muito além da essência do ser treinador.

Grato pela vossa atenção,

Manuel Madureira»