Primeiro, o momento: o Brasil tinha acabado de eliminar o Chile, em «oitavos» suadíssimos com 1-1 até ao 120 e decisão para os penalties.

Felipão agarrou-se à imagem da Nossa Senhora de Caravaggio (como conhecemos bem este cenário...), todos unidos, todos abraçados, expressões tensas, entre a esperança e o medo, dos jogadores brasileiros que iriam marcar as penalidades. Ninguém queria ficar como o Barbosa de 2014, aquele que roubou o sonho do título mundial brasileiro em Copa a jogar em casa.

Júlio César, 35 anos a completar em setembro, escolha de Felipão para a baliza mesmo perante o avançar da idade, do mau jogo com a Holanda em 2010 e da descida e perda de titularidade no QPR, desfaz-se em lágrimas na flash, momentos depois do triunfo. De ter parado dois penalties e acertado no lado quando Jara acabou por atirar ao poste.

«
Para nós, jogar uma Copa do Mundo em casa é uma pressão muito forte, mas graças a Deus deu tudo certo para nós.  Há quatro anos eu dei uma entrevista muito triste, chateado. Estou repetindo com você, mas com felicidade. Só Deus e a minha família sabem o que eu passei e passo até hoje. Mas eu sei que minha história não acabou. Meus companheiros estão dando força para chegar em campo e dar meu melhor. Faltam três degraus. Espero dar uma entrevista com você, com muita felicidade e o Brasil numa grande festa. É o meu sonho...»
JÚLIO CÉSAR, lavado em lágrimas, na flash logo a seguir aos penálties vencedores do Brasil sobre o Chile



A história por trás das lágrimas

Como explicar aquelas lágrimas na flash? Jessica Corais, jornalista sediada no Rio, especialista em futebol brasileiro, aponta, em declarações à Maisfutebol Total: «Júlio viveu um momento muito difícil ao longo destes quatros anos. Na Copa de 2010 o Brasil foi eliminado num lance envolvendo uma falha de Júlio com Felipe Melo e foi muito criticado por diversos torcedores e pessoas da imprensa brasileira. Ele sofreu muito, se abateu e pensou que após esta falha não conseguiria nunca mais voltar a Seleção. Por isso, o choro é lembrar de tudo isso e pensar: "Sairei como vilão novamente ou herói?" Ele saiu como herói. É o choro da redenção. Esta disputa era tudo que ele precisava para dar a volta por cima.»

Na mesma linha, Miguel Lourenço Pereira, analista de futebol internacional e autor dos livros «Sonhos Dourados – 20 Histórias 20 Mundiais», contextualiza, também à Maisfutebol Total: «Os guarda-redes no Brasil sempre foram uma espécie de párias, especialmente nas derrotas. Desde o célebre caso de Barbosa, o "homem que fez chorar milhões de brasileiros", passando pelas performances de Leão ou Valdir Peres, sempre se procurou encontrar no guarda-redes o culpado das derrotas. Isso passou com Júlio César há quatro anos. Depois disso a pressão nos seus ombros tornou-se insuportável, a sua carreira caiu a pique mas com Scolari teve direito a uma segunda oportunidade. Ter sido o herói do Brasil como Taffarel foi em 94 contra a Itália significa o fim de uma sensação de maldição para Júlio César!».

Melhor ou não, eis a questão

Que Júlio César é a escolha de Scolari (tanto assim, que nem o avançar da idade nem mesmo o facto de ter deixado de jogar regularmente na Premier League e mesmo no QPR, que entretanto desceu.

Mas... será Júlio César o melhor guarda-redes brasileiro do momento? Aí, as opiniões não são unânimes: «A história de Júlio é curiosa. Ele desde a eliminação para a Holanda em 2010 não pensa em outra coisa a não ser disputar novamente uma Copa do Mundo e viu as possibilidades quase acabarem quando virou reserva do Queens Park Rangers. Foi então que ele decidiu abrir mão de seu salário, de jogar em grandes clubes, para manter-se em forma e atuante, optou por ir para o Toronto. Todo o esforço valeu a pena e hoje ele é titular novamente da Seleção. Júlio é sim o melhor goleiro hoje no Brasil. Tem experiência, é regular e brilha em horas decisivas», considera Jessica Corais.

Já Miguel Lourenço Pereira aponta: «Pessoalmente acho que o Victor é o melhor guarda-redes brasileiro do momento. Não me esqueço também de Diego Alves, um excelente guarda-redes que jogou alguns encontros com Mano Menezes e desapareceu no início do mandato de Scolari. Júlio César era sem dúvida um dos melhores do Mundo em 2010 - tinha tido um ano brilhante com o Inter de Mourinho - mas os últimos quatro anos foram a pique de tal forma que nem no QPR pareciam acreditar nele. A mudança para o Toronto foi «sui generis» mas fundamental porque Scolari deu-lhe toda a confiança do mundo o que o ajudou a preparar-se de forma especial para o torneio. Tem demonstrado estar em forma, excelentes reflexos - fez uma defesa memorável na primeira parte - e por ele a segurança brasileira, comprometida sobretudo pelos laterais, está garantida». 

Roberto Rivelino Silva, autor do projeto «O Mundo dos Guarda-Redes», comenta, à Maisfutebol Total: «Júlio César não perdeu as qualidades que o fizeram um guarda-redes de sucesso. Está nas selecções brasileiras há 20 anos e sempre teve um papel ativo nas conquistas, como na Copa América-2004, quando, com Adriano Imperador ou Diego, derrotou a Argentina na final e ainda defendeu um dos penaltis na decisão. Na imprensa brasileira um dos pontos mais discutidos era a titularidade de Júlio por culpa das boas exibições de Jefferson na baliza do Botafogo, mas o factor experiência/estatuto, aliados à sua qualidade, fizeram dele o escolhido de Scolari, conhecedor das mentalidades e bom condutor de homens. Merecia mais que o Toronto FC, mas, quando aos 34 anos já se ganhou tudo e se encontrou a realização pessoal, penso que não se pensa muito nisso, pelo menos neste caso, pois viu-se pela homenagem que recebeu no balneário que Júlio César esteve no Canadá de corpo e alma. Tem qualidade para mais e pode ser titular garantido em muitas das melhores equipas do mundo». 


VEJAM COMO DESAFIA IBRA ANTES DE UM PENÁLTI NUM MILAN-INTER


Líder, como Scolari gosta

Mas mesmo quem não o aponta como «melhor guarda-redes brasileiro» percebe e cauciona a escolha de Felipão para a baliza do escrete no Mundial: «O Júlio César não é melhor guarda-redes brasileiro, nem sequer o que estava em melhor forma, mas é um líder do balneário como Scolari gosta. No final do Mundial de 2010, no almoço de despedida da concentração, fez um dos discursos mais emotivos que muitos dos presentes afirmaram lembrar-se e prometeu voltar em 2014 para emendar o erro contra a Holanda, num jogo que até à expulsão de Filipe Melo o Brasil estava mais forte. É esse espirito de guerra de Júlio César que também forma a espinha dorsal desta equipa». 

Poderá ele, em momentos como os dos penálties com o Chile, «empurrar» o Brasil para o hexa? Mais devagar: «É muito bom ter um goleiro vivido, experiente e ótimo como é o Júlio, mas só ele sozinho não será capaz de ganhar o hexa. Contudo, ter um goleiro como Júlio contribui e muito para um time ser campeão», observa a brasileira (e carioca, como Júlio…), refere Jessica Corais. 

Roberto Rivelino vai mais longe: «Júlio César é um homem de fé e o desastre contra a Holanda podia ter arruinado a carreira de um dos melhores guarda-redes do Mundo neste século, não fosse a personalidade e espírito de sacrifício do goleiro. A necessidade de se redimir da desilusão de 2010 fez com que Júlio se levantasse e lutasse pelo povo brasileiro. Apesar de não ter jogado esta temporada no QPR, penso que o processo decisivo iniciou-se na Copa das Confederações, quando foi o melhor guarda-redes da competição e defendeu o penálti a Forlán na semi-final».

O autor de «O Mundo dos Guarda-Redes» lembra que «uma casa não se constrói pelo telhado e o guarda-redes é o alicerce de qualquer equipa ou selecção. Com Júlio César não é diferente. É um pouco arriscado afirmar que Scolari começou esta caminhada para o Hexa com a insistência no Júlio, mas a verdade é que um guarda-redes tem de oferecer confiança e segurança à equipa, e mais que isso, saber transmiti-las. Júlio César é a base do Brasil por essas e outras razões.»

O PENÁLTI DEFENDIDO POR JÚLIO CÉSAR A FORLÁN NAS MEIAS DA CONFEDERAÇÕES


B.I.
JÚLIO CÉSAR
Nome: Júlio César Soares de Espíndola
Idade: 34 anos
Data de nascimento: 3 de setembro de 1979 (34 anos)

Naturalidade: Rio de Janeiro, Brasil
Altura: 1, 86
Peso: 79 quilos

PERCURSO COMO JOGADOR
Posição: Guarda-redes
Percurso: Flamengo (1997/2004), Chievo, Itália (2004/05), Inter de Milão, Itália (2005/2012), Queen’s Park Rangers, Inglaterra (2012/14), Toronto FC, Canadá (2014)
Principais títulos: Champions 2010 (pelo Inter de Milão), Mundial de Clubes (2010, pelo Inter de Milão), duas Confederações pelo Brasil (2009, 2013), Copa América (2004), Copa Mercosul (1999), cinco títulos italianos (2006, 2007, 2008, 2009 e 2010), quatro Supertaças de Itália, quatro estaduais cariocas pelo Flamengo (1999, 2000, 2001, 2004); melhor guarda-redes UEFA 2010

«Mundo Brasil» é uma rubrica que conta histórias das experiências de jogadores e treinadores brasileiros que atuam ou já atuaram em campeonatos espalhados pelo globo