Quando há cerca de 300 anos o cientista e explorador francês Charles Marie de La Condamine fez uma expedição dos Andes até à Amazónia, pelo curso do rio Amazonas, parou em Vila de Ega (hoje município de Tefé); foi bem recebido pelo exército português e convidado pelos índios cambebas para assistir a um jogo.

No princípio era a bola. E mais do que o passatempo em que os cambebas jogavam num terreiro «durante todo o dia», chutando-a com os pés – ao contrário dos aztecas, na América Central, que usavam a cintura –, o que mais espantou o explorador francês foi a matéria-prima do esférico. Era uma bola de borracha, feita com o material da seringueira, que saltava contrariando a lei da gravidade.

La Condamine assinalou a inovação no livro «La Carte»: «Os índios fabricam garrafas, botas e bolas ocas, que se achatam quando apertadas, mas que tornam à sua primitiva forma...»

Esse registo, que viria a ser decisivo para o início do ciclo da borracha, serviu agora também de mote para o filme documental «Amazonas, o jogo da bola», realizado por Francisco Filho, cineasta amazonense com sangue índio e português e descendente de seringalistas, que recolheu testemunhos de historiadores e outros académicos amazonenses para explorar a importância nos primórdios do futebol da região brasileira bem no centro daquele que é considerado como o «pulmão do mundo».

Pode no meio da floresta amazónica estar uma das chaves da criação do futebol moderno? Francisco, aliás, Chicão Fill [ao centro na foto principal], como é alcunhado no meio cinematográfico, afiança que sim e levou ao cinema «essa história incrível, que nunca havia sido contada».

«Essa bola de borracha dos índios cambebas foi levada para a Europa e é esse material inovador para os povos europeus que vai fazer pular a bola de trapos e que está na origem do futebol moderno, com regras escritas, inventado pelos ingleses em 1864. Essa descoberta na Amazónia está na origem do futebol mundial. Sem a borracha não era possível chegar ao futebol como foi inventado. Foi dessa bola que pulava que nasceu a ‘ginga’, a cabeçada…», explica Chicão Fill ao Maisfutebol.

A era pré-Charles Miller

Outra das teses defendidas pelo documentário tem que ver com a introdução do futebol moderno no Brasil. A história difundida pelos meios de comunicação conta que a 14 de abril de 1895 Charles Miller, paulista de origem britânica, organizou o primeiro jogo de futebol em São Paulo, iniciando um fervor pela modalidade que viria a alastrar-se por todo o país.

A versão de «Amazonas, o jogo da bola» é substancialmente diferente daquela em que se defende que o Brasil esperou mais de trinta anos para tomar contacto com o futebol moderno:

«Manaus e Belém eram cidades prósperas no período de glória do ciclo da borracha – que se tornou uma espécie de petróleo na segunda metade do século XIX – e havia em todo o Amazonas e em estados vizinhos várias concessões comerciais inglesas. Tivemos contacto com o futebol muito antes de Charles Miller. Os ingleses traziam bolas de futebol para jogarem entre si e isso atraia os nativos. Além disso, entre estes, os filhos dos barões da borracha já estudavam na Europa e tinham contacto com o jogo, trazendo bolas de futebol no regresso. Eram, no entanto, uma elite, jogavam com um equipamento muito chique: cinto, bota… Ingleses e essa elite da região não se misturavam. Aliás, o próprio termo 'pelada' vem da péla que reveste a borracha», explica.

Apesar do papel importante nas origens, o Amazonas não tem tido representação nos patamares mais elevados do futebol brasileiro. Não há na região clubes com capacidade financeira e desportiva para rivalizarem com os clubes do eixo Rio-São Paulo-Minas e do sul do país.

No entanto, o futebol tem episódios e características surpreendentes naquela região remota, do tamanho da Europa Ocidental. «A primeira claque gay do Brasil é a do Rio Negro, clube centenário de Manaus: a Galo Negro foi fundada na década de 1980», solta Chicão Fill, antes de se debruçar sobre maior curiosidade do futebol do Amazonas: o «Peladão» de Manaus, sobre o qual coproduziu um documentário premiado para o canal National Geographic.

Do Peladão ao campeonato de penáltis

Criado em 1972, por um jornalista de «A Crítica», o «Peladão» é o maior campeonato amador do mundo, com mais de mil equipas e um concurso de misses a decorrer em paralelo (a competição está a decorrer até janeiro). «Apesar do rótulo de amador, é muito bem organizado e tem regras muito próprias: cada equipa tem uma rainha e mesmo que não ganhe vai sendo classificada até à fase decisiva, se tiver uma rainha bonita – há também equipas que escolhem rainhas feias para dizerem que são boas de bola. Até há pouco tempo, havia a possibilidade de o árbitro expulsar a claque das bancadas. Se estiver a chover, a equipa não joga porque caem muitos raios na região...»

Uma competição inusitada, tal como os campeonatos de penáltis que se têm tornado muito populares entre as comunidades indígenas. Tudo decorre da conjugação entre a paixão pelo futebol e o constrangimento provocado pela natureza, explica o cineasta:

«São regiões remotas, com floresta muito densa e sem espaço para fazer campos de futebol. Por isso, os índios que vivem em zonas ribeirinhas fazem balizas com traves artesanais e organizam campeonatos de penáltis. São torneios que duram o dia inteiro, com forró, comida… Espalham-se cartazes pelas redondezas com os prémios: o primeiro lugar ganha um boi, o segundo uma vaca, o terceiro uma galinha…»

O trabalho de Chicão Fill traça uma linha temporal sobre toda a riqueza do futebol amazonense, desde raízes na floresta, há quase 300 anos, até aos tempos mais recentes.

Da bola de borracha dos índios cambebas aos entrepostos comerciais ingleses, que se dedicaram à biopirataria que quase destruiu o ciclo da borracha e a economia da região. Dos primeiros grandes estádios – como o Parque Amazonense e o Vivaldão – à moderníssima Arena da Amazónia, sede do Mundial de 2014, que recebeu um jogo da seleção portuguesa. Dos clubes que lutam por subir nas séries mais baixas do Brasil até ao organizado e popularíssimo futebol amador do «Peladão» de Manaus… E daí até a um quase regresso às origens, num revivalismo dos praticamente extintos cambebas, com o campeonato de penáltis disputado por povos indígenas. Tudo isto faz parte da história do futebol. 

No mundo, há poucos lugares como a Amazónia para explorar de forma tão rica as raízes da paixão pelo jogo.