A polémica volta a associar-se à candidatura do Qatar à organização do Mundial 2022, com a Amnistia Internacional a reforçar denúncias antigas relativas às condições que estão a ser dadas aos trabalhadores das obras dos estádios que vão acolher a prova, a esmagadora maioria emigrantes.

Num relatório divulgado esta quinta-feira e que condensa dados recolhidos entre fevereiro e maio de 2015 e comparados com outros de fevereiro deste ano, a organização alerta para a «chocante indiferença» da FIFA face ao cenário de constante violação dos direitos humanos que encontrou.

«O lado feio do jogo bonito: exploração num estádio para o Mundial 2022 no Qatar». Este é o título do documento, que se debruça sobre as obras no Estádio Internacional Khalifa, em Doha, que deverá ser o primeiro a ficar pronto para o torneio e está previsto que receba uma meia final.

A Amnistia Internacional fala em abusos sistemáticos, que vão desde a falta de pagamento ao impedimento de regresso a casa de vários emigrantes, falando mesmo em casos de trabalho forçado.

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A maioria dos trabalhadores são oriundos do Bangladesh, Índia e Nepal e, no caso destes últimos, é mesmo dado conta da intransigência dos responsáveis locais em autorizar um regresso ao país após o terramoto de abril do ano passado, em que várias famílias ficaram dizimadas.

As conclusões da Amnistia Internacional foram baseadas em 132 entrevistas realizadas no local a trabalhadores emigrantes do Estádio, além de mais 99 entrevistas a trabalhadores das áreas verdes da chamada zona Aspire, onde se localiza a Academia Aspire, que já recebeu clubes como o Bayern Munique ou o Real Madrid. O Estádio Internacional Khalifa nascerá no mesmo complexo.

Obras na Zona Aspire (Foto Amnistia Internacional)

Salil Shetty, secretário geral da Amnistia internacional, dá a sua opinião: «O abuso dos trabalhadores emigrantes é uma mancha na consciência do mundo do futebol. Para jogadores e adeptos, um estádio do Mundial é um local de sonhos. Para alguns trabalhadores que falaram connosco, é um pesadelo real. Apesar de cinco anos de promessas, a FIFA falhou completamente na tentativa de impedir que o Mundial seja construído em cima de abusos humanos.»

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No relatório, a Amnistia Internacional enumera uma lista de falhas graves nas condições dadas aos trabalhadores. A saber:

-Alojamento limitado e miserável;

-Largas quantias (entre 500 a 4300 dólares) pagas aos recrutadores nos seus países de origem;

-Informações falsas sobre salários ou tipo de trabalho (de todos os inquiridos apenas seis não relataram receber menos do que lhes foi prometido e alguns recebem metade);

-Vários meses de salários em atraso;

-Empregadores não dão ou não renovam autorizações de residência, originando riscos de deportação por serem considerados trabalhadores clandestinos;

-Empregadores confiscam passaportes aos trabalhadores e não entregam autorizações de saída do país impedindo-os de deixar o Qatar;

-Ameaças a quem se queixa das condições.

No entender do organismo não restam dúvidas: alguns destes abusos podem mesmo ser consideradas trabalho forçado ao abrigo da lei internacional. Até porque numa das empresas fornecedoras de mão de obra sucederam casos de entrega de trabalhadores à polícia depois de confiscados os passaportes e expirados os vistos de residência.

O diretor geral Salil Shetty revelou ainda que, no regresso dos investigadores ao país, em fevereiro deste ano, vários casos irregulares detetados no passado tinham sido corrigidos, nomeadamente no que ao alojamento diz respeito. Mas uma gota no oceano de abusos, sustentam.

«Vivem em campos miseráveis no deserto, ganham uma ninharia…a vida dos trabalhadores emigrantes contrasta em absoluto com a dos jogadores de topo que vão jogar naquele estádio. Os trabalhadores não querem o mesmo que eles, querem o que é seu por direito: ser pago a tempo, poderem deixar o país se precisarem e serem tratados com dignidade e respeito», afirmou.

O dirigente vai mais longe e não isola a FIFA, alertando ainda alguns dos maiores patrocinadores dos eventos desportivos bem como clubes que têm utilizado as instalações desportivas do país.

«Receber o Mundial ajudou o Qatar a promover-se como destino de elite para vários dos maiores clubes do mundo. Mas o mundo do futebol não pode fechar os olhos aos abusos que são praticados nos complexos e nos estádios em que os jogos são realizados», acrescenta Salil Shetty.

Falando diretamente à nova direção da FIFA, presidida por Gianni Infantino, o secretário geral da Amnistia Internacional apela: «Se a nova liderança é séria no virar de página que querem fazer, não podem permitir que um evento global como este seja disputado em estádios construídos à custa de abusos de trabalhadores emigrantes.»

«É tempo para os líderes do futebol dizerem algo ou serem culpados por associação», rematou.

Dois casos reais

O drama dos trabalhadores (Foto Amnistia Internacional)

O relatório da Amnistia Internacional relata alguns casos reais (com nomes fictícios para proteção de identidade), dos quais expomos dois. Ambos provocados pelas leis do país que impedem que um trabalhador emigrante mude de emprego ou deixe o país sem autorização do empregador.

Tinha sido anunciado em 2015 que este sistema seria alvo de uma reforma, mas a Amnistia Internacional acredita que pouco mudará.

Depois de se queixar por falta de pagamento do salário, «Nabeel», indiano, recebeu apenas ameaças: «Disse-me que se me continuasse a queixar nunca sairia deste país. Tenho tido mais cuidado desde aí com as queixas. Claro que, se pudesse, mudaria de trabalho ou deixaria o Qatar.»

Outro caso é o do nepalês «Deepak», que também conta a sua história: «A minha vida aqui é como uma prisão. O trabalho é duro, são muitas horas debaixo do sol. A primeira vez que me queixei da minha situação, pouco depois de chegar, o responsável disse-me: ‘se queres queixar-te haverá consequências. Se queres ficar cá fica quieto e continua a trabalhar’»

Este relatório da Amnistia Internacional promete ser mais uma pedra no duro percurso que a FIFA tem percorrido desde que atribui o Mundial 2022 ao Qatar, desde o calendário da prova, às denuncias por corrupção no processo de candidaturas, jornalistas detidos e, naturalmente, às queixas pela falta de condições dos trabalhadores no país.