Mais uma noite de facas longas no futebol italiano. Um raide policial passou pela casa dos antigos jogadores Gennaro Gattuso e Cristian Brocchi, de caminho deteve quatro suspeitos e depois fez o ponto da situação sobre aquele que as autoridades acreditam ser um esquema de manipulação de resultados que atravessa todo o futebol italiano, a começar pela Serie A. Tudo isto soa familiar e de facto já ouvimos esta história antes. Com outros nomes como protagonistas, mas com o calcio como denominador comum.

As investigações e suspeitas de corrupção desportiva ou viciação de resultados não são exclusivas de Itália. Vão emergindo, e emergiram recentemente, informações sobre combinações de resultados noutros países de topo, como Inglaterra e Espanha. A Europol revelou há alguns meses uma investigação que identificou centenas de jogos manipulados no continente. É um problema sério, admitem as autoridades e os responsáveis pelo futebol. E os processos que correm em Itália têm ramificações internacionais. Ainda nesta terça-feira a imprensa italiana citava o juiz de Cremona responsável pelo caso, Guido Salvini, a estabelecer a ligação com Singapura e com o próprio Mundial 2014: «A organização de Singapura que tem por líder Tan Seet Eng - preso nas últimas semanas pelas autoridades de Singapura e envolvido na investigação em Itália -, projetava, ao que parece, um plano de intervenções ilícitas no próximo Campeonato do Mundo, no Brasil.» 

Em Itália, de qualquer modo, os casos têm tido maior dimensão e maior impacto.

Esta é a mesma investigação iniciada há três anos conhecida como Calcioscommesse, ou Last Bet, e que levou em 2011 à detenção do antigo internacional Giuseppe Signori, entretanto libertado, suspenso de atividades desportivas e sob investigação, ou Cristiano Doni, este quando ainda jogava pela Atalanta e que foi igualmente suspenso. Terminou a carreira seis meses depois, em junho de 2012, e abriu um bar em Palma de Maiorca. O outro nome relevante envolvido no processo foi o de Stefano Mauri, atual jogador da Lazio, a cumprir nesta altura uma pena de suspensão desportiva de nove meses por omissão de denúncia de um alegado resultado combinado dos jogos Lazio-Génova, de 14 de maio de 2011, e Lecce-Lazio, de 22 de maio do mesmo ano.

Agora foi Gattuso a ver-se associado ao caso. O antigo médio, campeão do mundo em 2006, viu-se envolvido no processo «através de escutas telefónicas», tal como Brocchi, segundo explicou o procurador Di Martino, responsável pelo processo, sem confirmar exatamente de que são suspeitos.

Gattuso: «Nem sei como se vicia um jogo»

Alguns pormenores dessas escutas foram publicados ao longo desta terça-feira na imprensa italiana e dão conta de centenas de contactos telefónicos e mensagens trocadas entre Gattuso e Francesco Bazzani, um dos quatro homens agora detidos. Os outros são Salvatore Spadaro, Cosimo Rinci e Fabio Quadri.

Gattuso já reagiu, em declarações a um canal da Mediaset. «Sinto-me ofendido e furioso. Não sei o que querem de mim. Eu nem sei como se vicia uma partida, não sei o que significa, nem saberia por onde começar», afirmou o agora treinador, afastado em setembro do comando técnico do Palermo. «Estou sereno e vou esclarecer tudo», concluiu.

No centro das suspeitas estão agora Francesco Bazzani e Salvatore Spadaro. Segundo escreve o «La Repubblica», citando o juiz Guido Salvini, que emitiu os mandatos de detenção, são eles o senhor X e o senhor Y que têm sido referidos ao longo deste tempo na imprensa como os elos de ligação entre os clubes e os corruptores.

Como funciona o esquema

São suspeitos de envolvimento na manipulação de 90 jogos desde 2009, 30 dos quais da Serie A. Quatro dos encontros do campeonato principal são da época passada. A imprensa italiana identifica o Palermo-Inter (1-0), o Parma-Atalanta (2-0) e o Pescara-Siena (2-3), e fala em suspeitas também sobre o Palermo-Bolonha.

O procurador Di Martino explicou o esquema. «Os detidos ofereciam pacotes de jogos que só eram revelados no último momento», disse. Se a proposta fosse aceite, o dirigente da equipa envolvida «dava luz verde aos jogadores, que só neste caso podiam lucrar com o jogo viciado».

A verba envolvida era de 600-700 mil euros, ao que se percebe por jogo, incluindo o dinheiro que ganhava o intermediário e o que ia para os dirigentes e jogadores. Essa verba, diz Di Martino, foi referida várias vezes nas escutas telefónicas. Numa delas Bazzani terá «falado de seis jogadores que receberam 25 mil euros cada um por um jogo; ao treinador teriam sido dados 70 mil euros».

Tudo funciona em cima da hora. Os intermediários colocam uma proposta de combinação no mercado negro de apostas e, se esta for aceite, entram em contacto com os clubes. Di Martino: «Até uma meia-hora antes do jogo podia haver proposta. Se fosse aceite, o Bazzani ou alguém por ele comunicava-o ao dirigente, que por sua vez o comunicava aos jogadores.»

As autoridades italianas justificaram este novo raide com o facto de as atividades criminosas persistirem, apesar das várias detenções que foram sendo feitas ao longo do processo. E Di Martino promete que o processo não se arrastará indefinidamente, prometendo conclusões para 2014.

Totonero, 2006 e 2012: acredita em bruxas?

A ver quais serão as consequências desta vez. Itália já penalizou várias vezes clubes e jogadores por casos destes . O primeiro aconteceu há muito tempo. Chamaram-lhe Totonero, foi um escândalo de manipulação de resultados que fez o Milan descer de divisão e que teve como protagonistas mais mediático o avançado Paolo Rossi. Suspenso por três anos, Rossi voltou a tempo de liderar a Itália ao título de campeã do mundo em 1982.

Aliás, a proximidade destes casos a grandes competições é curiosa. Mais curioso ainda, quando acontece a Itália dá-se bem no Mundial (ou no Europeu) que se segue. Não acredita em bruxas?

Voltou a acontecer em maio de 2006. Dessa vez chamaram-lhe Calciocaos e as autoridades esperaram pelo fim do Mundial 2006 (que acabou com a Itália campeã do mundo, sim) para avançar com as penas desportivas, que condenaram a Juventus a descer à Serie B e a perder dois títulos de campeã.

E depois, o Calcioscommesse também entrou pelo centro de treinos da seleção de Itália dentro em maio de 2012, antes do Euro 2012. As suspeitas cairam sobre Domenico Criscito, que estava na calha para ir com a Itália ao campeonato da Europa e acabou afastado, também ele sob investigação. Nessa altura também Buffon e o treinador da Juventus, Antonio Conte, foram investigados.

E não, a Itália não foi campeã da Europa em 2012. Mas foi à final.