«Mais cedo ou mais tarde ia acontecer» o que aconteceu no Rio Tinto-Canelas. A observação é de Luciano Gonçalves, presidente da Associação Portuguesa de Árbitros, depois da agressão de um jogador do Canelas ao árbitro José Rodrigues. Que teve pelo menos o condão de chamar a atenção. Provocou reações e decisões, da Federação aos próprios árbitros, que decidiram não apitar jogos do Canelas. E se este é um caso particularmente grave, alargou a discussão para a questão mais geral. Não foi caso isolado, numa época que, diz a APAF, está a bater recordes de agressões a árbitros. Nem sequer foi o único no domingo passado.

Naquele dia houve outro incidente no jogo entre Romariz e Avanca da principal divisão dos distritais de Aveiro. Longe da dimensão do de Rio Tinto, mas mais um. «No mesmo dia houve um árbitro agredido em Aveiro, onde não se conseguiu identificar o agressor. Um adepto que se chegou junto do árbitro assistente, agrediu-o, atirou-lhe uma garrafa de vidro», relata ao Maisfutebol Luciano Gonçalves. O jogo prosseguiu, mas o árbitro acabou por o dar por terminado ainda antes de se terem atingido os 90 minutos.

O jogo está aqui na íntegra, filmado pela AfaTV, projeto da Associação de futebol de Aveiro. Não se vê o que se passou, mas é aos 59 minutos no vídeo que vemos o árbitro conversar com o assistente e interromper o jogo.

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A reação foi rápida. «A Associação de Futebol de Aveiro e a Federação já obrigaram o clube a ter policiamento até ao fim da época», diz Luciano Gonçalves.

Arménio Pinho, presidente da AF Aveiro, reforça a ideia em declarações ao Maisfutebol. «As indicações que estão dadas é que o Romariz até ao fim da época vai levar com policiamento. É assim que fazemos com qualquer clube em que os adeptos se portem mal.»

O Romariz até já tinha sido notícia há algumas semanas por outro incidente com um árbitro, nesse caso de um jogador. Em relação ao que se passou domingo, Arménio Pinho diz que ainda não leu o relatório do árbitro e conta o que ouviu: «Deitaram cerveja ou não sei quê para cima do árbitro assistente.»

Aquele era um jogo sem policiamento. Como são muitos encontros do futebol nacional abaixo dos escalões principais, desde que a lei mudou em 2012, deixando de tornar o policiamento obrigatório. «Se tivesse policiamento muito provavelmente aquilo não acontecia. Só o facto de haver policiamento já causa logo algum distanciamento», diz Luciano Gonçalves.

É nos jogos sem polícia que acontecem a maioria dos incidentes com árbitros em campo, nota o responsável da APAF. Sobretudo os que envolvem adeptos: «85 por cento das agressões são em jogos sem policiamento. Quando não há policiamento, é 90 por cento adeptos.»

Policiamento: custos e como funciona

Arménio Pinho recorda que a mudança da lei foi ao encontro da vontade dos clubes, para poupar nos custos. «Há uns anos, foi um anseio de todos, que diziam que custava muito aos clubes. Houve um forcing muito grande para que deixasse de ser obrigatório», recorda. Esses custos atualmente são divididos, explica também: «Agora o MAI paga 50 por cento do custo. 3,4,5 elementos policiais custam 50, 60 euros. Não é por aí. Mas os clubes vão querendo não gastar dinheiro. Depois, também podem aumentar os custos. Se dissermos que o jogo vai ser de risco agravado o posto é capaz de mandar 10 pessoas. Já custa mais, é por cabeça.»

Os jogos que deverão ter policiamento são decididos caso a caso. A Associação de Aveiro faz uma avaliação antecipada de cada jogo, para decidir o risco potencial e se terão ou não policiamento. É o que faz também a Federação, que explicou isso mesmo no comunicado em que anunciou, depois da agressão do jogador do Canelas, que todos os jogos de seniores e juniores passarão a ter policiamento até ao final da época.

A nível distrital, no caso de Aveiro, passa-se assim, explica Arménio Pinho: «Temos uma comissão de classificação dos jogos, que semanalmente analisa as incidências do fim de semana e delibera logo para os fins de semana seguintes. Temos um regulamento de segurança homologado pelo IPDJ, fizemos formação para diretores e seguranças, à volta de 1200 pessoas, em vários locais do distrito. Essa comissão delibera qual é o risco de cada jogo. Não é obrigatório chamar as forças de segurança mas nós, quando há incidências, deliberamos que os clubes tenham policiamento até ao fim da época.»

«O incidente que houve há três semanas com o Romariz, um jogador que se pôs às cavalitas do árbitro, não teve a ver com indisciplina dos adeptos», prossegue, a explicar por que razão este jogo do clube de Santa Maria da Feira com o Avanca não teve policiamento.

Voltando ao panorama geral, a Federação decidiu já que os jogos sob a sua alçada passarão a ter policiamento. Um bom passo, diz Luciano Gonçalves. «Ficamos satisfeitos em começar a ver que efetivamente se começa a fazer alguma coisa, a ver as instituições procurarem soluções. Ficámos satisfeitos com o comunicado da Federação a manifestar desagrado pela agressão ao José Rodrigues, pela decisão de ter policiamento em todos os jogos até final da época nos seniores e juniores.»

Mas esta medida não se estende a toda a pirâmide do futebol. «Estamos a falar apenas dos jogos organizados pela Federação. Nos jogos organizados pelas associações têm que ser as próprias associações a tomar a iniciativa», diz Luciano Gonçalves, acrescentando ter esperança que a medida se alargue: «Eu creio, até porque têm excelentes pessoas à frente, não tenho dúvidas que irão seguir esse caminho. Espero é que seja o quanto antes.»

O dobro das agressões a árbitros e o ambiente do futebol português

O problema é grave, insiste o dirigente associativo dos árbitros. Não é novo, como pode recordar nesta reportagem do Maisfutebol de 2015. Mas voltou à ordem do dia esta época. Marcada por incidentes com árbitros dos escalões profissionais também. Em janeiro, ameaças a Soares Dias motivaram uma reunião de emergência dos árbitros, que voltaram a debater o assunto em março, perante o aumento de casos em vários escalões. Até nos infantis, segundo relatou na altura Luciano Gonçalves. As contas da APAF falam de um enorme aumento de situações de violência nesta temporada: «Esta época já houve 44 agressões a árbitros, com a de Aveiro. Claramente está a aumentar, duplicou em relação ao total da época passada.»

E o problema não é apenas o policiamento, ou casos extremos como o do Canelas, defende Luciano Gonçalves. «O ambiente crispado no futebol português, por mais que digam que não, tem um reflexo cá em baixo muito elevado. A nossa falta de cultura desportiva, também em grande parte os comentadores que não desempenham o papel de comentadores desportivos mas de arbitragem. Banalizam e vão descredibilizando a figura do árbitro.»

Um ponto que a Federação também identificou, primeiro numa declaração do vice-presidente Hermínio Loureiro, a propósito do Canelas: «Infelizmente o ato inqualificável do passado domingo veio comprovar que o problema da violência não está diretamente relacionado com o policiamento e que é absolutamente redutor vê-lo apenas assim. Isto é uma questão de cidadania, de educação e de respeito. E estamos todos convocados para essa discussão.»

E depois no comunicado em que foi anunciado o policiamento generalizado a todos os jogos de seniores e juniores sob alçada da federação, que aludiu à «violência verbal» no futebol português e à responsabilidade dos seus intervenientes: «A FPF também não ignora a irresponsabilidade com que são tratados os árbitros de futebol, diabolizados dia após dia por pessoas com responsabilidades nos clubes com maior número de seguidores e por pessoas socialmente relevantes.»

Está marcada para esta quinta-feira uma reunião do secretário de Estado da Juventude e Desporto com a Federação, Liga, associações de árbitros e treinadores e Sindicato de jogadores, para debater a «violência no desporto». Luciano Gonçalves espera, no que diz respeito aos árbitros, ver sair decisões concretas desse encontro.

«Espero que saiam medidas práticas. Se sair por exemplo da reunião que o policiamento vai ser obrigatório em todos os jogos. É um dos nossos pedidos», observa.

Mas está longe de ser esse apenas o problema, prossegue. «É uma medida que tem de ser tomada tendo em conta o momento atual. Tem de se fazer um trabalho de mudança de mentalidades», continua, para dar alguns exemplos: «Castigos mais punitivos. Se os pais não sabem comportar-se, tem de se arranjar forma de punir os pais. Responsabilizar os clubes também.»

Arménio Pinho também fala numa questão de educação, embora defenda que a situação não é particularmente crítica, pelo menos na associação que dirige. «Acho que também está a ser dada muita orpoaganda a esta coisa da arbitragem e da violência. A segurança deve ser a primeira coisa a preservar. Mas um jogo também não é uma missa. Tem que haver responsbailidade, mas depois há sempre uma certa dinâmica», diz: «Não tem havido grandes casos aqui e somos uma das associações com mais gente a ver jogos, às vezes cinco, seis mil pessoas. Estamos atentos, não deixamos prevaricar. Quem fizer uma não faz outra.»

«Isto vai tudo da educação das pessoas. Temos de dar formação, também no papel dos pais, dos encarregados de educação», prossegue, acrescentando que esse é um trabalho que está planeado fazer também com a Federação: «Há dias houve um encontro de associações e uma das coisas que se pretende é atuar na formação de dirigentes.»

Canelas: a «impunidade» e o que se segue

Voltando à questão que potenciou a discussão atual: o Canelas e a agressão de domingo. Que aconteceu, aliás, num jogo com forças policiais no campo, uma medida que já estava em prática num campeonato onde na primeira fase a esmagadora maioria das equipas se recusou a defrontar o Canelas, pelo historial violento da equipa. Agora joga-se a fase final e as equipas voltaram a entrar em campo frente à equipa onde jogam vários membros da claque Super Dragões, para evitarem a pena de desclassificação. «Aconteceu naquele jogo por outros fatores. Porque se viveu esta situação ao longo do tempo com impunidade. Mais cedo ou mais tarde ia acontecer», constata o dirigente da APAF.

E porque é um problema recorrente os árbitros decidiram tomar uma posição, depois de uma reunião na noite de terça-feira: «Os árbitros estão indisponíveis para apitar jogos do Canelas enquanto não forem tomadas medidas.»

Essa posição foi transmitida aos responsáveis da Associação de Futebol do Porto, que justificaram assim aos árbitros porque a situação do Canelas continou a arrastar-se: «O que nos foi transmitido é que a nível de leis e regulamentos não foi possível tomar outras medidas. Mas que iriam daqui para a frente recorrer a todos os meios de prova para poder condenar aquelas atitudes que temos visto do Canelas.» Até agora, a AF Porto apenas emitiu um comunicado sobre o assunto, a condenar o que se passou e a dizer que «envidará todos os esforços para erradicar os atos de violência».

No limite, se o próximo jogo do Canelas for marcado e não aparecerem árbitros, procurar-se-á na bancada quem possa apitar o jogo. Luciano Gonçalves não tem meias palavras para comentar esse eventual cenário: «Era muito mau. Era mais um episódio triste do nosso futebol.»

O clima em torno dos árbitros tem consequências. Na credibilidade do jogo, mas não só. Luciano Gonçalves diz que não se tem notado menor número de candidatos a árbitros nos últimos anos, mas há uma outra tendência. «O que notamos é que existe uma taxa de retenção cada vez menor. Nos cursos continuamos a ter o mesmo número de alunos. Não conseguimos é depois retê-los. Passados uns anos desistem, muitos por culpa deste clima.»

Por isso, os árbitros mantêm em aberto a luta. «Estão todas as hipóteses em cima da mesa. Queremos fazer parte da solução», diz, a propósito de um eventual boicote mais generalizado aos jogos.

«Mas o que queremos é soluções», conclui Luciano Gonçalves: «Não nos interessa resolver no momento e no próximo ano por esta altura estarmos outra vez a falar nisto.»