No mesmo dia em que Lance Armstrong acusava o ex-presidente da UCI de encobrir a análise positiva após a sua primeira vitória no Tour, em 1999, uma reportagem divulgada pela estação pública alemã, WDR, voltava a traçar cenários inquietantes sobre o uso generalizado de doping nas grandes competições.

A peça, de nove minutos, dava conta que centenas de amostras de urina, recolhidas durante o último ano, em especial nos Mundiais de Atletismo, realizados em Moscovo, passaram a dar resultados positivos ao serem analisadas de acordo com um novo método. Os negativos, obtidos anteriormente, deviam-se ao facto de a presença de algumas substâncias proibidas se tornar indetectável ao fim de pouco tempo. O novo método, utilizado em laboratórios de Colónia e Moscovo, deteta metabolitos de longo prazo. Em consequência, um número ainda não determinado – e identificado - de atletas passou para o lado negro da Força.

A dimensão do problema é tal que levou o sueco Arne Ljungqvist, presidente da comissão médica do Comité Olímpico Internacional, a admitir a necessidade de exames retroativos a testes realizados em anteriores edições dos Jogos Olímpicos – algo que o COI já começou a fazer, a partir dos Jogos de Inverno de 2006. E assim, de súbito, abre-se um abismo sobre tudo o que julgamos saber sobre a história do desporto. Até onde vai ser possível investigar, e reescrever o que tínhamos por certo? Até que ponto, pegando nas acusações de Armstrong, as federações e os responsáveis pelas modalidades estão disponíveis para pôr o seu património em causa?

Não se pode esquecer o contexto. A acusação de Armstrong e as análises retroativas surgem num ano em que a agência Mundial de combate antidoping (WADA) atacou em força no coração de uma das maiores potências mundiais do atletismo, a Jamaica, pátria da maior estrela global da modalidade. Num ano em que o desporto na Austrália viveu, nas palavras de um representante governamental, o seu «dia mais negro». E num ano em que o julgamento de Eufemiano Fuentes, em Espanha, impressionou pelo que foi dito e mais ainda pelo que foi silenciado.

Tudo isto deixa-me a sós com a pergunta incontornável: de que lado estou? Quanto quero, mesmo, saber sobre uma máquina que trafica ciência, falseia resultados e põe vidas em risco? Estou disposto a hipotecar todas as memórias, todos os afetos construídos, frame a frame, ao longo dos anos em que vi desporto? Pronto para colar o rótulo de «mentiroso» a todo e qualquer pódio, qualquer meta ou qualquer golo que me tenha feito levantar, na bancada ou no sofá, e tenha trazido à flor da pele o melhor de mim?

Repito a pergunta. E processo o «sim» a que a razão me conduz. Depois faço a pergunta outra vez. Submeto-a a outro método de análise: um que deteta a permanência prolongada no organismo de metabolitos emocionais de longo prazo. Um que determina quanto destas memórias e afetos me tornaram no que sou hoje. E então dou por mim a despir camadas e camadas de certeza, uma a uma, até me confrontar com a evidência nua de que estou bem menos seguro da resposta do que gostaria. E vocês?



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