Houvesse um dicionário de imagens icónicas da história do futebol e esta sequência entraria seguramente em tão ilustre compêndio. Como qualquer outro dicionário, percorrê-lo-íamos com os dedos até chegar à letra «I» e aí procurar a definição de «inteligência». Ou então continuar até à letra «K» e encontrar o seu sinónimo: «Kaká».

No fundo, Kaká é isso mesmo. Inteligência em campo, dos pés à cabeça. Inteligência em movimento. E tudo isso pode ser sintetizado na perfeição num lance em que em apenas oito segundos é transbordada tanta inspiração artística que não poderia ter melhor palco do que o «Teatro dos Sonhos» e uma meia-final da Liga dos Campeões.

A primeira mão havia começado bem para aquele Manchester United que cada vez mais era o de Cristiano Ronaldo. Ele mesmo, embaixador-mor do futebol português e já ídolo da North Stand, inauguraria o marcador aos 5 minutos.

Onze do Milan em Old Trafford (24 de abril de 2007):

Mas se recuamos a 24 de abril de 2007 é para recordarmos a pequena revolução em campo no jogo do Milan que Kaká comandou praticamente sozinho.

22 minutos de jogo, o médio brasileiro recebe com o direito, rompe na área, e quase sem ângulo remata de pé esquerdo para o empate. No festejo, cumpre a tradição de erguer os dois indicadores para os céus.

A força divina, porém, só baixaria com todo o seu esplendor ao relvado de Old Trafford um quarto de hora depois.

Cabeça-pé-cabeça-pé. Fórmula simples, até porque a beleza não tem de ser complexa.

Kaká ganha a dividida de cabeça a Fletcher, faz um vólei com o pé direito sobre Heinze, que sai ligeiramente comprido e fica à mercê dos dois centrais do United e do próprio médio brasileiro. A partir daqui, o que conta é a velocidade do corpo e do pensamento. A partir daqui, as circunstâncias clamam mesmo por um truque de ilusionismo… E o que acontece é magia. Um toque sublime de cabeça provoca a colisão entre os seus dois adversários diretos. Um toque de génio deixa Heinze prostrado, Evra fora do lance e Kaká na cara do golo a perguntar a Van der Sar «para que lado queres?»

Golo! Que golo genial! Uma ode à lógica das coisas simples e à rapidez de raciocínio. Um dos mais belos momentos da Liga dos Campeões, aqui descrito na primeira pessoa:

É um dos golos mais belos que fiz na carreira. A bola é lançada, eu ganho a dividida com o Fletcher, aparece Heinze, eu toco-lhe a bola por cima e entretanto aparece Evra. A única possibilidade que tinha de chegar primeiro do que os dois era meter a cabeça… Venho lançado e quando toco na bola ele (Evra) colide com Heinze... E ali estou eu, em frente da baliza. Uma coisa que gosto é colocar a bola. Não gosto de rematar em força quando tenho apenas o guarda-redes pela frente. Depois foi festejar.

Não obstante a celebração, Kaká deu a volta ao marcador, mas o jogo foi tão louco que teria ainda outra reviravolta. Wayne Rooney protagonizou-a com um bis na segunda parte que valeu a vantagem de 3-2 para a equipa de Alex Ferguson.

Aquela revolução com pés (e cabeça) de veludo que Kaká começou em Old Trafford só atingiria os seus propósitos uma semana mais tarde, já em solo italiano, quando o Milan virou de vez a eliminatória, com um 3-0 claro. Kaká, mais endiabrado nessa eliminatória que os «Red Devils» voltou a infernizar-lhes a vida em San Siro, abrindo o marcador.

Um mês e menos um dia depois daquela noite mágica em Old Trafford, o Milan resolveria com um bis de Filippo Inzaghi a final de Atenas diante do vizinho e rival do United.

Nesse triunfo por 2-1 contra o Liverpool, os «Rossoneri» levantariam o seu sétimo e último troféu da Liga dos Campeões. Daquele golo de Kaká sobra a memória do último grande Milan europeu e do craque brasileiro no seu apogeu numa das mais perfeitas e telegráficas definições de inteligência para os compêndios do futebol mundial.