Não é por capricho, ou apenas falta de imaginação, que se diz que os grandes jogos são sempre um pedaço de história.

A verdade é que eles traçam muitas vezes o caminho por onde segue a narrativa dos tempos. Há dérbis, por exemplo, que definiram completamente o futebol como o conhecemos.

Ora à boleia de uma brincadeira nas redes sociais, o Maisfutebol fez uma pergunta: se tivesse esse poder, de que dérbi mudava o destino? Mas foi mais longe e tratou de imaginar também o que mudaria na história do futebol português com um resultado diferente naquele dérbi.

Afinal de contas, se é para inventar, vamos fazê-lo a sério.

Para isso, falámos com Rui Silva, um dos autores da rubrica Encruzilhada, no podcast Matraquilhos, na qual juntamente com Manuel Neves constrói uma realidade alternativa no futebol a partir da alteração de um pequeno facto da história.

Rui Silva escolheu quatro dérbis, virou o resultado do avesso, deixou a imaginação fluir e mudou completamente a história. Seja, portanto, bem-vindo a este universo paralelo.

SPORTING-BENFICA, 3-6
14 de maio de 1994

Foi um daqueles jogos que definiu uma década: na circunstância, uma década do Benfica sem ganhar nada (à exceção, claro, daquele título de ciclismo em 1999, que provocou uma enchente em completa euforia no Estádio da Luz). Vamos virar tudo do avesso? Vamos lá, então. O Sporting vencia, claro, passava para primeiro lugar e provavelmente era campeão. Sim, o Sporting era campeão. Já imaginou? A reviravolta que isso não significava nas nossas vidas... Os dezoito anos sem ganhar mingavam para doze e Sousa Cintra ganhava um lugar no Panteão. O Sporting ia continuar a contratar bons jogadores, nem que para isso o presidente tivesse de invadir uma guerra ou sair do Cairo com uma arma apontada a ele, e Alvalade mantinha-se um espaço de excentricidades. O Projeto Roquete voltava para a gaveta de onde Pedro Santana Lopes e o próprio José Roque o arrancaram à força. Já o Benfica não disputava a Liga dos Campeões na época seguinte. Artur Jorge, por isso mesmo, não trocava o PSG por uma equipa em crise e não destruía ainda mais o que pouco que sobrava na Luz. Toni continuava provavelmente à frente do clube, a unir os cacos em que se transformara o clube, que é algo que o passado já mostrou que ele sabe fazer bem. João Pinto não se tornava património material do benfiquismo, e provavelmente até saía para construir uma carreira mais mediática no estrangeiro, a Fiorentina não perdia a cabeça com Rui Costa, que podia ficar mais um ano na Luz e ser depois vendido ao Barcelona, e Vale e Azevedo não tinha motivos para ganhar as eleições em outubro de 1997.

BENFICA-SPORTING, 1-0
14 de maio de 2005

Benfica e Sporting entraram na penúltima jornada do campeonato empatados em pontos e a defrontar-se no Estádio da Luz, onde um golo de Luisão aos 82 minutos praticamente entregou o título aos encarnados. Neste exercício de reescrever a história, vamos virar o resultado do avesso e entregar o título ao Sporting. Primeira conclusão: José Peseiro era campeão. Sim, sim, não faz sentido, mas tenham calma. Estamos no campo das hipóteses irreais. Ora José Peseiro era campeão, tornava-se um treinador consagrado e construía uma carreira independente de mercados como o árabe, o egípcio ou o romeno. Até porque o Sporting entrava num ciclo positivo e provavelmente dava outra resposta na final da Taça UEFA em Alvalade, frente ao CSKA Moscovo. Já imaginou José Peseiro campeão e vencedor da Taça UEFA na mesma semana? Ricardo passava à história como um bom guarda-redes e Beto cumpria por fim o destino de uma grande transferência para o Real Madrid. O Sporting conquistava o terceiro título em seis anos e afirmava-se como grande potência nacional do início do novo século. Já o Benfica somava o 12º ano sem ganhar nada, agudizava uma crise que já ia longa e provocava a saída de Luís Filipe Vieira, que sem aquele título em 2005 não teria seguramente aguentado tantos anos na presidência: o que também afastaria o Benfica de umas quantas investigações judiciais.

BENFICA-SPORTING, 1-2
14 de abril de 1986

Para os mais novos, este foi um dérbi cruel para o Benfica. O Sporting já estava afastado da luta pelo título e, na penúltima jornada, foi vencer a um Estádio da Luz completamente lotado e preparado para festejar o título. Com este resultado, o FC Porto passou para a frente e foi campeão. Ora um resultado diferente no dérbi não mudava muito na história de Benfica e Sporting: o título dos encarnados era mais um numa década de oitenta com vários e o rival continuava sem ganhar. Mas mudava muito na história do FC Porto. Sobretudo porque não sendo campeão não ia disputar a Taça dos Campeões Europeus no ano a seguir, não era campeão europeu em Viena e não vencia a Taça Intercontinental em Tóquio. Paulo Futre não seria segundo na corrida à Bola de Ouro, já não servia de trunfo eleitoral para Jesus Gil y Gil e não ganhava um Porsche amarelo. Não existiria o calcanhar de Madjer, Artur Jorge não teria começado uma carreira internacional e Delane Vieira não conseguiria inaugurar a tradição de bruxarias no futebol português. O FC Porto, já agora, não teria adquirido tão cedo dimensão internacional e Pinto da Costa seria, com grande probabilidade, menos consensual no clube.

Mais um

DISPUTA ENTRE BENFICA E SPORTING POR EUSÉBIO
17 de dezembro de 1960

Não é um jogo, mas foi provavelmente o dérbi que criou o maior fosso entre Benfica e Sporting. Os dois rivais estavam na corrida por Eusébio e o Benfica ganhou. Se tivesse acontecido ao contrário, como tudo o que está neste artigo, a história do futebol português seria hoje bem diferente. Em primeiro lugar não tinha havido o nome de código Ruth e António Pinhão Botelho não teria filmado uma das longas-metragens mais propagandistas da história do cinema português. Eusébio não teria viajado escondido no Super-Contellation da TAP, sem passar pela porta de embarque, e A Bola teria perdido o maior furo jornalístico da sua história. Talvez nem pudesse autointitular-se a Bíblia do Desporto. É provável que o Benfica não tivesse ganhado tantos títulos, sobretudo aquela segunda Taça dos Campeões Europeus, mas também é provável que a caminhada de Portugal no Mundial 66 não fosse tão boa: afinal de contas Eusébio não tinha um conhecimento tão profundo da maior parte das restantes estrelas nacionais. O Benfica não era hoje, seguramente, um clube com tantos adeptos hoje e o Sporting teria garantido pelo caminho mais títulos e apoiantes: porventura alongava até a hegemonia no futebol português mais uma década, para lá dos anos 50.