Liberdade. A palavra que melhor resume a vida de Bob Marley. Das ruas andrajosas do bairro de Trench Town ( cidade do esgoto, em português) onde cresceu, até ao triste definhar, sempre a mesma filosofia. Liberdade. Sem amarras, longe das regras, dos ditames da civilização. Isso nunca existiu para Robert.

Cedo se habituou ao desprendimento e à vida fácil. Sob o sol escaldante das Caraíbas, limitou a existência à exploração de dois desideratos: os jogos de rua com os amigos e a descoberta dos discos de vinil da numerosa família.

Calções rasgados, pé descalço, joelhos esfolados e uma indomável bola de borracha. O idílio de Bob Marley numa das mais pobres zonas dos arredores de Kingston. A vila de Nine Mile.

«Conheci o Bob ainda muito novinho. Ele tinha seis/sete anos quando o comecei a ver jogar na First Street, onde morava com a mãe e os irmãos. Eu morava perto, na Fourth Street», explica Carl Brown, um dos mais importantes treinadores de futebol da Jamaica, ao Maisfutebol.

Brown treinava na altura alguns escalões jovens do Boys Town FC. Bob chegou ao clube com oito anos. «Corria, corria, corria, nunca se cansava. Eu gostava de me sentar numas escadas e observar os miúdos a jogar à bola. Depois, convidava os melhores para virem treinar ao Boys. Quando desafiei o Bob, ele não queria acreditar e fugiu. Pensava que lhe queria fazer mal.»

A encruzilhada: futebol ou música?

O primeiro dia no novo clube mostrou-se problemático. Regras, disciplina, horários, o horror de Bob Marley. «Não foi fácil controlá-lo. O que mais me marcou nele foi o entusiasmo. Jogava das oito da manhã até às três da tarde nos nossos campos. Treinava com o escalão dele, mas isso não lhe era suficiente», recorda Carl Brown.

«Para os jovens daquela zona da vila de Nine Mile, jogar no Boys Town era o maior dos sonhos. Mas o Bob... era diferente. Adorava estar lá, sem dúvida, mas tinha de ser da forma como ele idealizava. Ninguém lhe podia dizer 'chega' ou 'não faças isto e aquilo'. Era saudavelmente indisciplinado, rebelde e apaixonado.»

Os anos passaram e Bob chegou a uma encruzilhada. Que caminho seguir? «Nunca percebi, até hoje, se ele gostava mais de música ou de futebol. Lembro-me de o ver a cantar e a dançar nos treinos, com os colegas à volta dele, a bater palmas e a rir», conta Brown, o primeiro treinador de Bob Marley.

A música acabaria por triunfar. «Ele tinha 13/14 anos quando saiu do Boys Town e começou a levar a carreira musical muito a sério. Mas manteve-se sempre perto dos amigos e ligado ao clube.»

Jogar no Estádio Nacional, a maior das recompensas

Bob mostrou-se ao mundo, pintou quadros de harmonia, projectou o reggae e o movimento rastafári. Sempre sem esquecer as raízes, humildes e exuberantes. «Certa vez, em 1971, antes de um jogo importante fomos surpreendidos por ele. Apareceu no balneário com uns equipamentos novinhos e ofereceu-os», lembra o técnico Carl Brown.

A noite tornar-se-ia inesquecível para o próprio Bob. «Ele tinha um grande desejo: jogar no Estádio Nacional. Estávamos numa final e senti-me na obrigação de o meter em campo alguns minutos. Ele já não treinava, embora continuasse inscrito.»

Nesse jogo esteve também Aston Ellis, um dos melhores amigos de infância de Bob Marley. «Tenho imensas saudades dele. Era doido pelo futebol e um extremo direito muito rápido. Não tinha grande técnica, mas fisicamente era um fenómeno», diz ao nosso jornal.

«Naqueles tempos ele ainda parecia melhor futebolista do que cantor. Muitas noites passámos a fumar e a conversar. Mais tarde, pouco antes de morrer, disse-me que estava arrependido de ter optado pela música.»

Timothy Whyte, conceituado crítico musical norte-americano, haveria de discordar. «A música de Bob Marley era pura: tinha uma expressão pública de uma realidade privada. Era mágica.»