As nuvens de pó do pelado.

A lama nas chuteiras e no corpo.

As queimaduras provocadas pela cal.

O sobe e desce em retângulos irregulares.

A terra batida marcou uma era no futebol. Ao longo das últimas décadas, os pelados começaram a ser substituídos por modernos relvados ou pisos sintéticos, com a crescente intervenção dos maiores clubes e dos municípios.

Em 2022, na segunda maior cidade de Portugal, ainda é possível encontrar um estádio parado no tempo, um resistente indesejado às ondas de mudança nos equipamentos desportivos e no próprio tecido urbano do Porto.

O Campo do Outeiro, casa do histórico Sporting Clube da Cruz, mantém o tapete amarelo há mais de 80 anos. Depois de uma luta hercúlea, o clube de Paranhos vai finalmente ter casa nova, fechando um ciclo na Invicta.

«O Porto estava atrasado em relação às cidades que estão à sua volta, como Vila Nova de Gaia, Maia, Gondomar, Matosinhos. Eu costumava dizer que quem queria ver futebol do início do século, tinha de vir ao Porto, à segunda maior cidade do país, e a uma freguesia em franco desenvolvimento urbanístico.»

As palavras de Hélder Ribeiro Pereira misturam frustração, por um longo período de reivindicações não ouvidas, e alívio, face aos dias do fim no atual pelado. A construção do novo Complexo Desportivo do Outeiro já está a decorrer e a mudança será finalizada ainda em 2022.

Os adversários queixavam-se no pelado e dos balneários exíguos e degradados. Os adeptos aglomeravam-se na pequena bancada, a única exigente, e num peão sem segurança. Os jovens com recursos demonstravam pouco interesse em representar o clube. Os patrocinadores torciam o nariz. Até as parcerias com o Sp. Cruz, um emblema com forte intervenção no plano social, eram comprometidas. Agora, tudo pode mudar.

A Câmara Municipal do Porto adquiriu o terreno onde se encontra o velhinho Campo do Outeiro, alugado ao clube de Paranhos, e avançou para a construção de um moderno complexo, com campo de jogos em piso sintético, bancada com 510 lugares e um edifício de apoio, num investimento de cerca de três milhões de euros.



«Somos dos únicos clubes onde os miúdos não pagam para jogar»

O Sp. Cruz será o principal beneficiado com a mudança, embora o espaço contemple os outros clubes, tratando-se de um equipamento municipal. De qualquer forma, o emblema portuense continuará a apostar numa formação livre, abrindo as portas para crianças dos bairros sociais da zona.

«Atualmente, conseguimos ter cerca de 100 jovens inscritos porque somos dos únicos clubes onde os miúdos não pagam para jogar. Pretendemos manter esta política e, entre dar uma sande e um sumo aos miúdos ou reforço a aposta em competições seniores, vou sempre pelos miúdos. Mas queremos que os nossos atletas não sejam filhos de um Deus menor», salienta o presidente do clube, em diálogo com o Maisfutebol.

Com um orçamento anual de 50 mil euros, o Sporting da Cruz vive da boa vontade de voluntários e da resiliência das suas gentes. Ainda assim, cerca de 40 por cento das receitas do clube provém de um enorme placard publicitário virado para a A3.

«A Câmara está a estudar uma forma de adaptar esse placard, face à mudança de local. Recebemos cerca de 20 mil euros por ele, portanto é essencial para nós», diz Hélder Ribeiro Pereira, acrescentando um pedido: «Gostávamos que as instalações da nossa IPSS e da sala de estudo fossem integradas no novo complexo.»

2022 será o ano de mudança para o Sp. Cruz, mais de um século após a fundação do clube, em 1919: «Esta mudança é um sinal de esperança para que o clube tenha mais um século de vida, é fundamental. O Campo do Outeiro foi construído entre 1928 e 1929 e está sem alterações há mais de 90 anos.»

«A demolição do atual campo estava prevista para maio e em setembro já estaríamos no novo, mas parece-me que haverá um ligeiro atraso, de cerca de dois meses. Seja como for, ainda em 2022 deixaremos de pisar a lama e levar com o pó do pelado», remata o presidente do clube de Paranhos.



«Desapareceram todos os pelados do Porto, menos o do Sp. Cruz»

Em 102 anos de história, o Sp. Cruz formou milhares de jogadores e a principal referência é José Nuno Azevedo, antigo lateral que representou o Sp. Braga durante mais de uma década. Zé Nuno pisou o pelado do Campo do Outeiro entre 1982 e 1985, antes da mudança para a formação do FC Porto.

«Eu saí em 1985 do Sp. Cruz para o FC Porto e em 2022, quase 40 anos depois, o campo está igual. É o último pelado da cidade e acredito que mesmo no Distrito do Porto já não haverá mais nenhum, só se for no interior», diz o atual treinador e comentador desportivo.

Antigo jogador do Sp. Cruz, José Nuno Azevedo congratula-se com o salto definitivo para a modernidade: «O clube já merecia isto há muito tempo. É um clube centenário que ajuda dezenas de crianças, substituindo-se ao poder local e nacional.»

O lateral passou pela formação do Cruz, do FC Porto e do União de Lamas, estreou-se como sénior no clube de Santa Maria de Lamas e representou o Famalicão antes de três épocas no Gil Vicente e 11 (!) no Sp. Braga. Ao longo dos tempos, foi confrontado com a extinção dos pelados e o crescimento dos sintéticos.

«Quando joguei nos juniores do FC Porto, a Constituição ainda tinha pelado e havia um nas Antas, atrás do pavilhão, que chamávamos de Tarrafal. Será onde está agora o Dragão ou a VCI. Entretanto, desapareceram todos da cidade do Porto, menos o do Sp. Cruz. Ainda há dias passei no campo do Progresso, no Amial, que está ao abandono. É pena», salienta, ao Maisfutebol.

Para o atual treinador e comentador, a terra batida já não faz sentido no mundo do futebol. «Claro que os pelados deixam saudades pelas memórias que criaram, mas as condições eram surreais. As pessoas criticam os sintéticos, nomeadamente devido às lesões dos jogadores, mas é uma evolução clara», remata José Nuno Azevedo.

Com o fim do pelado do Campo do Outeiro, termina a era da terra batida na cidade do Porto. O parque desportivo da Invicta tem sofrido inúmeras mutações ao longo dos anos e os adeptos foram perdendo de vista algumas emblemas históricos, sujeitos a constantes mudanças.

O panorama atual nos clubes da AF Porto que disputam provas de futebol sénior:

  • FC Porto: joga no Estádio do Dragão, inaugurado a 16 de novembro de 2003. A equipa principal disputa a Liga portuguesa;
     
  • Boavista: joga no Estádio do Bessa Século XXI, inaugurado a 30 de dezembro de 2003. A equipa principal disputa a Liga portuguesa;
     
  • Salgueiros: o Estádio Vidal Pinheiro foi demolido em 2006 para a construção de uma estação de metro. Perante o sucessivo adiamento da construção de um novo recinto em Arca d’Água (o Plano Director Municipal aprovado em maio de 2021 já contempla um estádio com capacidade para 5000 espectadores), a equipa que joga no Campeonato de Portugal está a utilizar o Complexo Desportivo de Campanhã;
     
  • FC Foz: o Campo da Ervilha tem piso sintético mas não possui as medidas regulamentares, obrigando a equipa principal, que disputa a Divisão de Elite – Apuramento de Campeão da AF Porto, a jogar em casa emprestada. A Câmara promete alargar o recinto. Por ora, a solução tem passado pelo Parque Desportivo de Ramalde;
     
  • Desportivo Portugal: o histórico Campo Ruy Navega está a ser demolido devido à construção do Terminal Intermodal de Campanhã. O clube vai ocupar um novo Complexo Desportivo Municipal, num terreno localizado na Rua de Justino Teixeira, mas até lá irá disputar os seus jogos da Divisão de Honra da AF Porto no Campo de Futebol do Parque da Cidade;
     
  • Ramaldense FC: o clube que festeja em abril o seu centenário e que deu a conhecer Humberto Coelho foi desalojado em 2009, após uma batalha legal com o dono do terreno onde está localizado o Campo Alberto Araújo, numa das zonas urbanas mais valiosas do Porto, bem perto da Avenida da Boavista. O recinto está a desaparecer para dar lugar a imóveis. A equipa sénior disputa a 1.ª divisão da AF Porto e joga atualmente no Parque Desportivo de Ramalde, antigo Inatel;
     
  • ADR Pasteleira: o Estádio da Pasteleira, localizado em Lordelo do Ouro, recebe os jogos da equipa que disputa a 2.ª divisão da Associação de Futebol do Porto;
     
  • Sp. Cruz: o velhinho Campo do Outeiro tem demolição prevista para maio de 2022 e vai ser substituído pelo Complexo Desportivo do Outeiro, alguns metros mais abaixo e com todas as modernidades. A equipa principal de futebol disputa atualmente a 2.ª divisão da AF Porto, o escalão mais baixo do futebol sénior federado;
     
  • Clube Marechal Gomes da Costa: o MGC, onde jogou André Villas-Boas, representa a popular Avenida Marechal Gomes da Costa, entre as freguesias de Lordelo do Ouro e Foz do Douro. Sem recinto próprio para a equipa sénior, que disputa a 2.ª divisão da AF Porto, tem alternado entre o Parque Desportivo de Ramalde e o Centro Desportivo AC Bougadense (Trofa). A deslocação tem uma explicação caricata: o policiamento de um jogo na Trofa fica mais barato do que no Porto.