8 de Março de 2006: Liverpool-Benfica, 0-2
Simão Sabrosa e Fabrizio Miccoli. Talento inquestionável. Golos bonitos, muitos deles decisivos. Jogos enormes nas mais variadas provas, dos campeonatos nacionais à Liga dos Campeões. Classe, instinto, qualidade reconhecida em Portugal, Espanha, Itália ou Turquia. Nenhum deles tinha lugar na equipa da minha terra.
O motivo é simples. Simão mede um metro e setenta. Miccoli tem ainda menos dois centímetros. «Impossível darem jogadores de futebol», imagino o treinador a dizer-lhes com ar de desprezo, quando lá aparecessem para treinar. Ali não havia dúvidas: primeiro o tamanho, depois o talento.
A norma encontrará semelhanças noutras equipas por todos os cantos do país. Vários sonhos destruídos por um estudo anatómico mordaz e de poucas complacências. Futebol é para duros. Grandes e fortes de preferência.
Em todas as ruas onde se jogava à bola existiu um talento desperdiçado. É uma teoria que defendo e que serve apenas para ilustrar a peneira que contraria a lógica comum.
Simão e Miccoli não tinham dado jogadores se o futuro dependesse daquele treinador. Ao Benfica, por exemplo, isso tinha custado uma das páginas douradas no novo século. Naquela noite de Liverpool, Simão e Miccoli foram os maiores em campo. O que não é fácil quando um dos adversários se chamava Peter Crouch.
Gosto de imaginar aquele jogo de Liverpool como uma revolta dos pequenos. Como se os dois tivessem combinado que aquela noite era só deles e iam fazer corar todos os talentos com mais de um metro e setenta.
Foi para vingar todos os «minorcas» que não passaram do paralelo para o relvado que o Simão teve a calma para esperar o momento certo, antes de colocar a bola lá no alto, num golo que seria difícil de validar na rua, onde as pedras fazem de postes e os golos não contam se o guarda-redes não chegar.
Foi em homenagem aos injustiçados pelo tamanho que Miccoli, com o estádio em suspenso, acabou com as dúvidas num pontapé de bicicleta de tirar a voz a qualquer benfiquista. A rua de Anfield não deixou desperdiçar aqueles talentos.
A vantagem que o gigante Luisão tinha dado ajudou, mas foram os génios de palmo e meio a fazer a diferença no final. Talvez o futebol não precisasse de mais demonstrações de poder de quem usa cadeira para chegar à prateleira mais alta. Messi, Romário, Maradona, Rui Barros, Chalana. Provas não faltam.
Mas as mentalidades não mudam. Ainda hoje ouço sobre vários talentos: «É bom jogador, mas precisa crescer». Ser bom não basta. É preciso ser grande.
O Benfica-Liverpool deu o seu pequeno contributo para desmistificar a ideia. O dia a dia da bola continua a fazê-lo. E continuará.
Mas teimosos há em todo o lado. E por isso insisto: Simão e Miccoli não tinham lugar no clube da minha terra. Se calhar é por isso que ele nunca calou Anfield Road.
«Cartão de Memória» é um espaço de opinião/recordação acerca dos mais míticos jogos internacionais do futebol português do século XXI, o tempo de existência do Maisfutebol. A ordem dos jogos reflete apenas a vontade do autor. Pode sugerir-lhe outros momentos através do Twitter.