A primeira viagem de Ernesto Che Guevara pela América Latina chegou a Hollywood pela mão do brasileiro Walter Salles. Na película, o realizador acompanha a expedição de Ernesto e Alberto Granado, inseparável camarada, na mota La Poderosa desde Buenos Aires até à península de Guajira, na Venezuela. A perda da inocência em mais de dez mil quilómetros.

Numa linguagem escorreita, Salles explora a evolução da consciência social e política que desabrocha em Ernesto, colocando num plano subalterno as experiências desportivas mantidas pelos dois colegas ao longo da travessia. E foram muitas, conforme explica ao Maisfutebol Alberto Granado, num emocionante testemunho desde Havana, Cuba.

«Jogámos em Iquique, no norte do Chile, e no Hospital de San Pablo, para leprosos, no Peru. O dinheiro era cada vez mais curto e tínhamos de ser muito criativos. Mas a mais marcante de todas as experiências aconteceu na Amazónia, numa pequena cidade colombiana chamada Leticia», recorda Alberto Granado.

Voz trémula, lucidez absoluta, a imponência de uma vida riquíssima a cada palavra proferida. «Chegámos à cidade e apresentámo-nos como treinadores de futebol. As pessoas eram humildes e acreditaram nas nossas credenciais. Como a equipa era fraquinha concordámos em jogar e treinar o Independiente Sporting Club. Era assim que se chamava o clube. Creio que já não existe.»

O penalty nas mãos de Che antes de Di Stéfano

Ernesto, limitado pela asma, ocupou a posição de guarda-redes. «Era valente, metia a cabeça e as mãos em qualquer jogada.» Alberto tornou-se o goleador da equipa. «Chamavam-me Pedernerita, pois todos conheciam o Adolfo Pedernera, que na altura era o astro do River Plate.»

A experiência em Letícia durou «alguns jogos, cinco ou seis» e terminou da melhor maneira. «Na final da competição marquei um golo e o Fuser [n.d.r. como Alberto tratava Ernesto] ainda defendeu um penalty. A vitória valeu-nos dinheiro e alimentos necessários para chegarmos a Bogotá.»

Na capital da Colômbia, conheceram Alfredo Di Stéfano, um dos maiores jogadores de todos os tempos. «Lembro-me que tudo aconteceu num restaurante. Vimo-lo e não resistimos a meter conversa. Era uma simpatia. Deu-nos dois bilhetes para o amigável entre o Milionários e o Real Madrid.»

Ministro sim, mas nunca na baliza

Alberto Granado esteve «mais de dez anos» sem ver o amigo Ernesto. «Fui viver para Cuba. Reencontramo-nos em Havana e vi-o pela última vez num jogo de futebol.» Che era já na altura ministro da Economia de Cuba, num governo presidido por Fidel castro.

«Fizemos um jogo contra uns universitários. O Fuser era ministro mas na baliza comportava-se como um guarda-redes doido. Logo no princípio saiu-se aos pés de um espanhol chamado Arias e deixou todos espantados. Era muito competitivo.»

Ernesto Guevara era adepto do Rosario Central e do Sportivo Alta Gracia. O jogador que mais admirava, além de Di Stéfano, chamava-se Ernesto Chueco García, o «poeta da canhota».