"Conto direto" é a rubrica do Maisfutebol que dá voz a protagonistas dos escalões inferiores do futebol português. As vivências, os sonhos e as rotinas, contados na primeira pessoa.

Tó Miguel, 42 anos, médio do Moura Atlético Clube.

«Para além de jogador do Moura, trabalho por turnos na ETAR (Estação de Tratamento de Águas Residuais). Faço um pouco de tudo, da captação à elevação, análises, gestão de reservatórios, avarias, etc.

Não vou dizer que é muito cansativo fisicamente, é mais a nível psicológico, por causa dos turnos. Tanto posso estar no turno 8h-16h, como 16h-00h ou 00h-08h. Esta semana estou de noite, por exemplo. Saio às oito da manhã, tomo o pequeno almoço e vou para o treino. Os treinadores tentam conciliar, tendo em conta a situação de um ou dois jogadores que trabalham. Mas por vezes tenho de ir treinar sozinho, de tarde, com o mister e o adjunto. Já tinha trabalhado com o Bruno Ribeiro. Tanto ele como os adjuntos são cinco estrelas. Os métodos são espetaculares, tanto gosta de aconselhar o mais novo como o mais velho, e tenta conciliar a situação de toda a gente.

Por vezes até é difícil ir aos jogos, mas felizmente os meus colegas facilitam e trocam, mas às vezes isso implica fazer dois turnos seguidos, por exemplo. Já aconteceu sair às oito da manhã para ir a um jogo fora, às 11h.

Inicialmente jogava no INATEL, pelo Santo Amador. Federado, só nos juniores, no Safara, e depois fui para os seniores do Moura. A dada altura parti a clavícula, depois tive um pequeno desentendimento com o presidente da altura, e deixei o Moura em 2002. Passei pelo Amarelejense, Piense e Barrancos, e voltei ao Moura em 2010. Em Barrancos, por exemplo, chegava a casa quase à meia-noite. O meu filho já dormia. Sempre gostei de futebol, mas como hobby. Decidi deixar de andar de um lado para o outro.

Comecei a trabalhar cedo, tive algumas dificuldades e deixei a escola, pelo que o futebol sempre foi um hobby. Tive oportunidades para ir para outros clubes, mas nunca pensei deixar de trabalhar. Dava só para ganhar um pouco mais. Tive convites dos Açores, de Espanha, e até cheguei a treinar no Alverca, no tempo do António Veloso. Nunca quis deixar o meu conforto, não faz parte do meu feitio.

Já fiz um pouco de tudo: já trabalhei no campo, serralharia, mecânico… tudo e mais alguma coisa. Houve momentos em que pensei deixar de jogar. Há momentos em que as coisas não correm como queremos, e por vezes perdemos a vontade, mas dez minutos depois passa, já estamos a pensar de maneira diferente. Digo à minha mulher e a toda a gente que vou jogar enquanto conseguir. Arrastar-me é que não. Esse dia vai chegar, mas que seja mais tarde. Eu quero continuar, vamos ver se consigo conciliar com o trabalho. Infelizmente já descemos de divisão, no Campeonato de Portugal. Isso custa-me, e não queria deixar a equipa assim. Eu sinto limitações é no início do jogo, mas depois passa tudo. E graças a Deus estou bem, tenho acabado bem os jogos. Tenho feito alguns jogos a central, mas por necessidade da equipa: o nosso central é bom miúdo, mas é uma cabeça maluca. Foi expulso, apanhou alguns jogos de castigo, e eu recuei. Entretanto já foi expulso novamente. Mas a posição onde gosto mais de jogar é a meio-campo, gosto de estar mais ativo no jogo.

Tó Miguel no Moura-V. Guimarães da Taça de Portugal 2014/15

O mais habitual, entre colegas e adversários, é dizerem-me: “então, velho, como estás?”. E eu respondo: “E a juventude, como se encontra?”. Alguns adversários que já conheço encontram-me em campo e dizem logo: “ainda aqui andas?!”. Eu respondo que para o ano é que me reformo, e eles começam logo a rir e respondem: “Há dez anos que dizes isso!”.

É o tal bichinho. Dois dias depois já ia sentir saudades, ia sentir falta do balneário, daquela convivência. Ajuda a distrair a cabeça.

Depois de pendurar as chuteiras gostava de continuar ligado ao futebol, mas como jogador consigo conciliar, e noutras funções não sei se consigo. Gostava de ajudar de alguma forma, até porque o meu filho também está no clube, mas ter possibilidade diária será difícil. Treinador não. Sempre exigi muito de mim, mesmo aos 42 anos. Há certas coisas que não consigo encaixar… há miúdos a quem exigimos muito, e eles quebram. Não é porque querem, mas tenho dificuldade em lidar com isso, pois exigo muito de mim. Acho que não vai dar.

Temos bons miúdos aqui no Alentejo, só que às vezes não estamos a aproveitá-los bem. A oferta é muita. Aqui no Alentejo não há muito para fazer, e alguns miúdos acabam por estragar-se. Deviam ser mais vistos e melhor aproveitados, pois há valor. Para os clubes a tarefa também é complicado: não é fácil recrutar jogadores para estas zonas. Estamos um pouco afastados, e acabo por ficar um pouco distante.»

Tó Miguel no V. Guimarães-Moura da Taça Portugal 2011/12