Pode discutir-se se, como diz Platini, se Cruijff foi ou não «o melhor jogador de sempre». Tal como é discutível classificá-lo como o maior treinador de sempre – o seu palmarés impressiona, mas há quem tenha ganho mais coisas em menos tempo, e Cruijff acabou a carreira ainda antes de completar 50 anos. O que parece não ter discussão, porém, é a evidência de que, na soma das duas faces – e juntando-lhe uma terceira, a de influente crítico, formador e fazedor de opinião – Johan Cruijff foi, a larga distância, a personalidade mais influente da história do futebol nos últimos 50 anos.

Elo de ligação entre o Ajax de Rinus Michels e o Barcelona atual, o holandês foi pioneiro no campo, no banco de treinadores e nos corredores do poder. E a sua visão sobre o fenómeno, tanto nas questões puramente desportivos como na componente laboral, e profissional, estendeu-se no tempo e na geografia: mesmo nunca tendo passado por lá, a marca de Cruijff foi evidente no Milan dos anos 80 – Gullit, Rijkaard e Van Basten que o digam – como continua a ser evidente no atual Bayern de Guardiola. E a legião de treinadores – incluindo vários portugueses - que em vários pontos do mundo admitem ter sido fortemente influenciados pelas suas ideias e métodos torna claro que a esfera de influência é impossível de limitar.

De jovem avançado explosivo a ideólogo do novo Barça, eis os pontos marcantes no trajeto de Cruijff:

1- Nasce uma estrela (1969)

Nos quartos de final da Taça dos Campeões Europeus, de 1968/69, dá-se uma passagem de testemunho marcante na história do futebol europeu. O Benfica, com Eusébio no auge da fama, vai a Amesterdão vencer por 3-1, num campo de neve. O apuramento fica garantido, ou assim se pensava, até o Ajax, já liderado por um Cruijff de 22 anos, se impor por 3-1 na Luz, com dois golos do magrinho nos primeiros 15 minutos. No jogo de desempate, em Paris, Cruijff volta a marcar e o Ajax vence por 3-0. A coroa de Eusébio muda de dono: aos 22 anos, a Europa encontra um novo rei. O estatuto é confirmado na final perdida desse ano (4-1 para o Milan), e nas três finais consecutivas ganhas em 1971, 72 e 73. Curiosidade: nessa altura, Cruijff joga ainda com o 9. A camisola 14 só seria adotada, no Ajax e na seleção, a partir de 1970.

2- Consagração ao pé de casa (1972)

Das três finais ganhas pelo Ajax, é a segunda, já sem Rinus Michels no banco, que transforma Cruijff num imortal do futebol. Conseguida em Roterdão, a vitória por 2-0 sobre o Inter é construída com dois golos seus e serve de desforra pela goleada sofrida três anos antes, diante do Milan. O triunfo sobre o representante mais famoso do catenaccio marca, para muitos analistas, um virar de página num debate ideológico sobre estilos de jogo que o próprio Cruijff irá alimentar nos anos seguintes.

3- Heroi na Catalunha (1973)

Sem o mentor Michels por perto, a personalidade difícil de Cruijff multiplica conflitos com dirigentes e colegas de equipa no Ajax. Sendo, claramente, a maior estrela do futebol europeu, o seu passe é pretendido pelos maiores clubes e a saída torna-se inevitável. No verão de 1973, enquanto o Ajax negoceia com o Real Madrid, Cruijff chega a acordo com o Barcelona, onde reencontra o treinador que o formou. Sem ganhar o título há 13 anos, o Barça embala para uma temporada de sonho, com o holandês a assumir um protagonismo absoluto, em especial nas vitórias sobre os rivais de Madrid.

4- A um passo do céu (1974)

Da festa em Barcelona para os relvados alemães, a lenda de Cruijff não para de crescer. O Mundial 1974 consagra a seleção holandesa como uma das melhores de sempre, mesmo que o título seja perdida na final, para a Alemanha de Franz Beckenbauer. É uma dupla passagem de testemunho: nesse mesmo ano, o Bayern tinha sucedido ao Ajax como campeão europeu. Mas se o título fica com a mannschaft, são as camisolas laranjas que ficam na memória coletiva – em especial aquela 14, só com duas riscas, que Cruijff decidiu fazer à medida, protestando o facto de o contrato da federação holandesa com a marca fornecedora de equipamentos não recompensar devidamente os jogadores.

5- Rumo aos States (1978)

Nem os melhores amigos de Cruijff negam a evidência: o feitio do holandês é muito difícil de gerir. Depois da estrondosa época de estreia no Barcelona, os títulos tornam-se mais raros e os conflitos mais frequentes. Em 1978, já com a certeza de que se recusa a ir ao Mundial da Argentina, por várias razões, a corda parte de vez. Com sérios problemas financeiros, depois de ter sido enganado por um sócio, Cruijff ruma à América, procurando refazer a fortuna e suceder a Pelé como grande divulgador do soccer nos Estados Unidos.

6- Treinador em embrião (1980)

Em 1980, com 33 anos, Cruijff suspende a carreira de jogador e volta ao Ajax como diretor desportivo. Uma etapa curta, até porque nunca foi fácil impor-lhe limites ao génio. O exemplo mais óbvio acontece em 30 de novembro desse ano: farto de ver, na bancada, o Ajax ser dominado em casa pelo Twente (1-3), Cruijff desce ao relvado, senta-se no banco, e dá indicações enérgicas ao treinador Leo Beenhakker. Depois vira-se para um jovem suplente de 18 anos, chamado Frank Rijkaard, e manda-o aquecer. Fica no banco até ao fim, e o Ajax ganha o jogo por 5-3. Moral da história: os dirigentes não podem, nem devem, interferir no trabalho dos treinadores. A menos que se chamem Cruijff.

7- O adeus… no Feyenoord (1984)

Cruijff não resiste muito tempo aos apelos para voltar a jogar. Em 1981 volta a calçar as chuteiras e cumpre mais duas épocas no Ajax, que ajuda a levar ao título nacional. Pelo meio, volta a espantar o Mundo com este penálti a três toques. Mas, depois, volta a zangar-se com os dirigentes do Ajax, que hesitam em prolongar-lhe o contrato. E para mostrar que quem ali manda é mesmo ele, vai jogar uma temporada para o histórico rival do Feyenoord. Aos 37 anos, sagra-se melhor jogador do campeonato e ajuda a equipa de Roterdão a conquistar a dobradinha, tendo a seu lado um jovem Ruud Gullit. Depois, sim, pendura as botas. Mas só quando quis.

8- Técnico de corpo inteiro (1985/92)

A relação de Cruijff com o Ajax conhece outra etapa em 1985, quando o clube de Amesterdão o convida para treinador. Durante três anos, aplica as suas ideias e constrói uma máquina de bom futebol, moldando à passagem uma geração de grandes talentos, entre os quais como Ronald Koeman, Frank Rijkaard e Marco Van Basten.

Em 1988, depois de conquistar a Taça das Taças pelo Ajax, repete o seu trajeto como jogador e muda-se para a Catalunha, onde inicia o ciclo dourado que viria a culminar com o aparecimento do dream team e quatro títulos de campeão espanhol, entre 1990 e 1994. A consagração é em Wembley, em 1992, com um livre direto do pupilo Koeman, à volta de quem construiu a estrutura defensiva do seu Barça. Para a lenda, ficam as palavras que dirigiu aos jogadores, antes da entrada em campo: «Olhem para as bancadas, vão lá para dentro e divirtam-se». Depois de duas finais perdidas, o Barcelona quebra finalmente o enguiço e sagra-se campeão da Europa pela primeira vez. Cruijff é Deus na Catalunha.

9- Adeus ao Camp Nou (1996)

«Depois de ganhares algumas coisas já não estás a 100 por cento, mas a 90. É como uma bebida com gás depois de aberta»

A frase, profética, acaba por apanhar Cruijff numa curva da estrada. Sem títulos em 1994/95 e 1995/96, torna-se contestado pelo presidente Nuñez e por alguns elementos da direção, que nunca lhe perdoaram o excessivo protagonismo. Cruijff não facilita as coisas, tomando opções muitas vezes incompreensíveis – e escudando-se na velha máxima «Se eu quisesse que percebesses tinha explicado melhor». Mesmo com o talento de Figo a brilhar no Camp Nou, os resultados não aparecem e a equipa está longe de parecer consistente. Na primavera de 1996, com 49 anos, Cruijff é empurrado para a porta de saída. Para o seu lugar, proveniente do Porto, chega Bobby Robson, com um adjunto ainda desconhecido, chamado José Mourinho. A relação entre os dois nunca seria boa.

10- Passagem de testemunho (1997-2015)

A saída de Barcelona pela porta pequena abre feridas que só o tempo ajuda a sarar. Pelo meio, usando e abusando do capital de influência que sempre teve na Catalunha, mesmo quando era persona non grata para os dirigentes, Cruijff mantém-se à margem do sistema. Não volta a ser treinador mas nunca deixa de funcionar como influenciador de decisões, quer como colunista quer como líder de fação. O título de presidente honorário no Barcelona, mais do que um ato de justiça, é uma forma de tentar apaziguar-lhe os ímpetos críticos, que usa contra Robson e, depois, contra Van Gaal, treinadores com os quais nunca se identificou. Mas o auge da influência vem em pleno século XXI.

Primeiro, sem deixar a teórica reforma, recomenda, e apoia, em 2003, a nomeação de Frank Rijkaard, mais um ex-pupilo, que leva o Barcelona à segunda Taça dos Campeões do seu historial, a primeira na era Champions. Depois, em 2008, quando assume novamente o papel de oráculo, para decidir quem deve suceder ao holandês. A corrida, a dois, é entre Mourinho e Guardiola. Cruijff, que nunca elogiou Mourinho publicamente, exerce toda a sua influência para que o escolhido seja Pep, o homem que melhor interpretava em campo as suas ideias e que, tal como ele, escolhia a formação de La Masía como pedra-base de todo o edíficio. Formador, guru e conselheiro de Guardiola, Cruijff empurra decididamente o Barcelona numa direção. Os efeitos desse empurrão sentem-se até hoje.

[artigo publicado originalmente a 25 de março de 2016, na altura da morte de Cruijff]