A caminho dos Jogos Olímpicos de Paris, o Maisfutebol lança uma série de conversas com atletas portugueses já qualificados. São 47 até agora, ainda com várias modalidades por definir. Estas são as suas histórias.

Duarte Seabra cresceu entre cavalos e em criança dizia que tinha o sonho de participar nos Jogos Olímpicos. Durante muito tempo, esse sonho esteve bem longe. «Se me perguntassem há sete anos se eu imaginava que conseguiria agora uma vaga olímpica, diria que era quase impossível.» Mas agora tudo se conjugou. Vai estar em Paris, a competir no torneio olímpico de saltos de obstáculos com os jardins do Palácio de Versailles por cenário.

Há sete anos, Duarte Seabra estava a iniciar o percurso nos saltos, depois de ter feito carreira noutra disciplina, o Concurso Completo de Equitação (CCE), que junta saltos, ensino e cross. E foi mesmo na disciplina mais seletiva do desporto equestre que encontrou o caminho para os Jogos Olímpicos.

No ano passado, chegou a liderar o ranking de apuramento olímpico. E quando no final de dezembro as contas encerraram, ele tinha garantido para Portugal uma quota de qualificação.

Agora, conta os dias para Paris. A preparação tem sido intensa. «Já saltei em três ou quatro continentes diferentes este ano. Tem sido uma experiência boa, é mesmo correr por gosto. Tem corrido muito bem e está tudo alinhado até agora. Já estamos na reta final e espero que nada aconteça. De cada vez que saio de casa, penso em não pôr um pé mal posto ou alguma coisa assim», sorri.

Crescer entre cavalos e um sonho de criança

O Maisfutebol encontra o cavaleiro português de 38 anos em Valada do Ribatejo, onde nasceu e onde tudo começou. Dizer que começou a montar ainda de fraldas não será exagero. Ele e os seus seis irmãos. «Nós vivemos no coração do Ribatejo e a minha família sempre esteve ligada aos cavalos e a todas as atividades relacionadas com o campo. Sempre montámos aqui em casa, num ambiente muito campestre. Tínhamos cavalos, não de competição, mas os cavalos que o meu pai criava. Todos os meus irmãos montaram. Eu e o meu irmão Francisco seguimos a vertente mais profissional.»

Duarte Seabra nunca teve dúvidas de que aquele era o seu caminho. «Tinha muito medo inicialmente, mas tinha um gosto enorme. Tive desde sempre uma certeza muito grande que era isto que queria fazer. E sempre sonhei muito com uma participação nos Jogos Olímpicos. Lembro-me de me perguntarem na escola qual era o meu sonho, e eu dizia que um dos meus sonhos era um dia participar nos Jogos Olímpicos.»

Tinha 16 anos quando venceu a sua primeira prova internacional e sorri com as memórias dessa vitória. No final foi ele próprio tratar da égua e quase falhou a entrega de prémios. «Foi uma prova de Concurso Completo em Santo Estevão. Fui fazer a prova com uma égua que tinha sido criada em minha casa. Aprendi tudo com essa égua. Fui sem grande expectativa e ganhei», recorda. «Eu não tinha grande ajuda, era o meu pai, o meu irmão… Normalmente não teria de ficar para nenhuma entrega de prémios, e com a nervoseira toda dei comigo distraído. Enfim, fazíamos isto completamente em família. Só depois é que se tornou uma coisa mais séria. E hoje em dia é a minha vida.»

Dez anos longe de Portugal

O ambiente em que cresceu facilitou a escolha, numa modalidade que requer uma capacidade financeira fora do alcance de muitos, como nota o cavaleiro português. «É um desporto muito caro, que para começar exige algum esforço financeiro. Eu tive a sorte de viver no campo, num meio onde o meu pai criava cavalos. Era muito mais fácil para mim.»

Ainda assim, foi longe de Portugal que Duarte Seabra conseguiu começar por fazer do desporto equestre forma de vida. «Aos 20 anos, tive uma proposta para me dedicar completamente ao CCE na Irlanda.» Emigrou então, passando a conciliar a competição com várias outras atividades, desde treinar outros cavaleiros ao comércio de cavalos. «Viver só da competição e do prize money não é fácil. Há cavaleiros do top 10 do ranking mundial que ganham prémios monetários significativos, mas todos nós ao mesmo tempo temos de estar envolvidos em várias outras coisas para tornar isto viável», observa.

O regresso depois de uma perda, para começar de novo

Depois da Irlanda, mudou-se para Inglaterra, onde esteve mais sete anos. Decidiu voltar após uma perda na família, a morte do irmão. Francisco Seabra, também cavaleiro, faleceu num acidente em competição. «Nessa altura quis ficar mais perto dos meus pais, da minha família.»

De volta a casa, acabou por começar de novo. «Depois de fazermos uma carreira e sermos profissionais, o CCE em Portugal não tinha grande viabilidade», nota. Então, desafiado por amigos, experimentou os saltos de obstáculos. «Vários amigos próximos puxaram-me, entre eles o João Mota, um cavaleiro consagrado que ainda hoje compete, que também era muito amigo do meu irmão. Fui muito acompanhado também pelo meu tio, o Francisco Louro, que infelizmente também nos deixou há pouco tempo e me acompanhou nestes anos todos.»

«Dediquei-me, sem grandes expectativas e sem grandes planos. Tive a sorte de conseguir o apoio de vários proprietários de cavalos que trabalhavam comigo e me apoiaram nesta mudança de disciplina e rapidamente consegui chegar a um nível bom», diz. «Fui um bocado levado ao colo estes anos todos. Tive várias pessoas que me motivaram muito. Estou-lhes muito grato por não me terem deixado desistir, ou decidir fazer outra coisa.»

Para Duarte Seabra, o desporto continua a ser um assunto de família. O trabalho logístico da sua atividade, desde logo, é assegurado pela sua mulher. «É ela quem faz toda a parte de contabilidade, trabalho de escritório. É fundamental na minha organização. O meu irmão mais novo também trabalha comigo, por isso tenho aqui um ambiente realmente privilegiado.»

Pai de quatro filhos, também eles já vivem esse ambiente. E talvez venham a seguir-lhe os passos. «A minha filha mais velha tem muito interesse, mas está à espera que o pai abrande um bocadinho a atividade desportiva para ter mais tempo para me dedicar a ela. Eu estou muito tempo fora de casa e falta-me tempo para os acompanhar. Espero que esse dia chegue. Eles viajam muitas vezes comigo e vibram todos muito a ver-me saltar.»

A relação com o cavalo, «parte da família»

Há outra relação fundamental para quem pratica desporto equestre, aquela que se estabelece entre cavaleiro e cavalo. Duarte Seabra fala sobre isso com paixão, descrevendo uma ligação que tem de ser assente no respeito.

«Os meus cavalos são parte da família. Toda a vida o meu pai me disse: ‘Primeiro comem os cavalos e depois é que comemos nós’. São um animal magnífico, muitíssimo sensível, e nós criamos uma relação muito próxima com eles. Eu tenho uma relação de respeito muito grande pelos meus cavalos, pelo que eles fazem por mim, por me permitirem fazer disto vida. Sou apaixonado por cavalos. Pelo animal e pela arte de montar.» 

«O que apaixona neste desporto é ser praticado por dois seres vivos, em sintonia. É único», continua. «No dia em que cavalo e cavaleiro estão alinhados e a coisa sai bem é uma satisfação enorme. É tão difícil lá chegar.» Envolve, diz, tentar compreender o cavalo e respeitar a sua natureza «A beleza deste desporto é tentarmos que o que fazemos em prova se aproxime o mais possível da natureza. Que o cavalo vá completamente confortável e nós não sejamos um incómodo para ele. Temos de nos conseguir adaptar àquilo que o cavalo é. Se temos uma forma de montar muito física, perde a beleza.»

O cuidado com os cavalos é uma parte importante do trabalho neste desporto. O tratamento, o acompanhamento veterinário, tudo isso envolve, em alta competição, «um nível de cuidado impressionante». Também no transporte, que implica complexas operações logísticas. «Os meus cavalos este ano já voaram para os Emirados, para o Qatar, para os Estados Unidos, para o México, para a China. Hoje em dia os cavalos viajam quase tão confortáveis como nós. Quando vim da China o cavalo chegou a casa primeiro que eu», sorri.

Duarte Seabra conseguiu a qualificação olímpica com o cavalo Dourados 2, que deve ser o seu companheiro de saltos em Paris. Entretanto já conseguiu classificar um outro cavalo, o Van Alen, pelo que terá sempre uma alternativa caso algo corra mal. «O meu plano A é o Dourados, mas um dos meus objetivos deste ano era conseguir obter os mínimos com este segundo cavalo. Nada irá acontecer à minha primeira opção, espero, mas se por acaso acontecer, tenho um plano B, o que é ótimo.»

As vitórias nas provas que cresceu a ver como espectador

Duarte Seabra tem competido ao mais alto nível e, na hora de tentar isolar o melhor resultado que conseguiu divide-se. Do ponto de vista desportivo, destaca a conquista do CSIO, o principal concurso internacional em Portugal. «É aquele Grande Prémio que toda a vida fui ver com os meus pais a Lisboa, no Campo Grande, e no qual sonhava um dia apenas participar.» Não só participou, como venceu a edição de 2023, que decorreu em Vilamoura. «Desportivamente deu-me um prazer enorme.»

Mas faz questão de referir também outra vitória, noutra competição que se habituou a acompanhar como espectador. «Portugal já não ganhava a Taça das Nações há quase 30 anos e eu fiz parte da equipa que a ganhou, há quatro anos. Já tive resultados desportivos mais importantes ou até mais difíceis, mas esse encheu-me o coração, porque era uma coisa que toda a gente no meio perseguia.»

Foi uma vitória para o desporto equestre em Portugal. Que Duarte Seabra vê com vitalidade atualmente, embora sinta que há menos gente nova a aparecer. «Talvez haja mais gente a saltar num nível mais alto. Vejo o número de praticantes a aumentar, mas ao mesmo tempo menos jovens, que é o que nos garante o futuro. Não sei exatamente porquê», observa: «Se calhar estamos a passar uma fase também no país ou na nossa economia que pode justificar um bocado isso. Mas acho que estamos em curva crescente. Temos vários cavaleiros nacionais bons e a saltarem a um nível bom.»

O apuramento olímpico de Duarte Seabra representa também um marco importante. Portugal esteve representado nos saltos de obstáculos nas últimas três edições dos Jogos Olímpicos por Luciana Diniz, cavaleira luso-brasileira que entretanto voltou a competir pelo seu país de origem. É uma modalidade com história – foi do hipismo a primeira medalha olímpica portuguesa, precisamente em Paris, em 1924, há cem anos. Mas há muito tempo que não havia um cavaleiro nascido em Portugal a conseguir esse objetivo.

Duarte Seabra recorda-se de isso ter acontecido nos primeiros Jogos de que tem memória, em 1992. «Lembro-me de ver em miúdo os Jogos Olímpicos de Barcelona, são os primeiros de que me lembro. Tínhamos algumas pessoas próximas do mundo dos cavalos que participaram nos Jogos», nota. «Mas entretanto as regras mudaram e tudo se tornou mais difícil.»

O ranking que nem conhecia e a memória a homenagear em Paris

Agora, ele conseguiu. Mas até ao início do ano passado esse objetivo estava longe do seu horizonte. Foi Francisco Louro, o tio de Duarte Seabra que teve um longo percurso na modalidade, nomeadamente como chefe de equipa em várias competições, quem percebeu que ele estava a obter resultados que poderiam levá-lo a Paris. «Eu tenho feito sempre o início de época nos Emirados Árabes Unidos e no ano passado, quando tive dois resultados bons lá, o meu tio, que era o meu manager e me ajudava a planear os ciclos, ligou-me e disse: ‘Olha que com estes resultados o teu ranking olímpico vai estar bom.’ Eu nem sabia do que ele estava a falar, confesso.»

Duarte Seabra continuou a somar pontos nesse ranking que apura os cavaleiros individuais elegíveis para uma vaga olímpica, através de provas específicas. E em março chegou à liderança. Pensou que seria temporário, até porque ainda não tinha começado a época de concursos na Europa. Mas em agosto continuava na frente. E então apostou nisso, dirigindo o planeamento para o objetivo olímpico.

«Pensei que teria de me focar nisso, se não também nunca me perdoaria por não ter tentado.» Ainda assim, tentou abstrair-se um pouco do entusiasmo à sua volta, dos amigos que ligavam a dizer que já estava. Até que chegou a confirmação.

Não fez uma grande festa. «Eu tinha pensado que, se conseguisse, ia com certeza abrir uma grande garrafa de champanhe, ia ser uma alegria. Quando consegui, não abri garrafa nenhuma. Aquela explosão de alegria que eu achava que ia ter passou diretamente para pensar no que tinha de fazer para me preparar para os Jogos. Senti uma responsabilidade muito grande», diz. «Foi uma caminhada interessante, que devo ao meu tio. Infelizmente não o vou ter comigo nos Jogos Olímpicos, por uma doença que apareceu e rapidamente evoluiu. Era um sonho partilhado, é uma grande mágoa que tenho. O que vou fazer será em grande parte por ele também.»

Objetivo para Paris é chegar… ao segundo dia

Para Paris, Duarte Seabra definiu como meta inicial tentar chegar ao segundo dia. Ou seja, à final. «O meu primeiro objetivo é conseguir passar da qualificação para a fase final, que é no segundo dia e terá duas voltas. Se assim não for, posso ir lá saltar só um dia e vir para casa. Mas acredito que estou com condições para passar a uma fase final do torneio olímpico.» E se conseguir? «Aí tudo pode acontecer.»

«Eu estou a fazer a Global Champions Tour, que é quase como a Fórmula 1 da modalidade. Consegui uma vaga este ano, de que também me orgulho muito, e estou a fazer esse circuito. Por isso, a preparação não podia ser melhor. Tenho competido ao mais alto nível, com grande parte dos cavaleiros que vão nos Jogos Olímpicos. Não me tenho saído mal, por isso sinto-me preparado para o desafio. Depois, logo veremos. É uma competição diferente de todas as outras. Eu já fiz o nível, mas não com a pressão de saber que estou nos Jogos Olímpicos. Espero estar à altura.»

O cavaleiro português tem consciência de que haverá pressão adicional, mas acredita que isso até pode ser positivo. «Essa ansiedade e esse nervosismo são o que me vai fazer desfrutar do facto de estar nos Jogos Olímpicos. Se eu chegar lá e não sentir nada vai ser uma desilusão. Eu gosto da pressão. Estou habituado a ela e faz-me desfrutar do momento ainda mais.»

O local onde decorrerão as provas equestres também é inspirador. Os magníficos jardins de Versailles, com o palácio como cenário de fundo. O que, nota Duarte Seabra, dá a medida da dimensão deste desporto em França. «É um sítio lindo. França é um enorme país de cavalos, que têm um impacto significativo na economia. E tem sempre possibilidades grandes de ganhar uma medalha no desporto equestre. O sítio escolhido pretende sem dúvida fazer jus à tradição e ao gosto que o país tem pela modalidade.»

Duarte Seabra ainda não decidiu se continuará a apostar no desporto ao mesmo nível depois de Paris. «É uma questão que me ponho a mim mesmo. A alta competição obriga-nos a muitos sacrifícios. Eu tenho 38 anos e os cavaleiros até aos 50 anos estão perfeitamente em forma. Acho que nos próximos Jogos eu poderia estar muito mais preparado. Mas eu gostava de fazer estes Jogos e sentir se ainda tenho motivação para pensar noutros. Porque também gosto cada vez mais de estar com a minha família e tenho dado muito tempo a isto.»

Para já, quer também usar esta presença em Paris para dar a conhecer melhor o seu desporto. É isso que faz a fechar a conversa, com uma mensagem em jeito de apresentação da modalidade a quem não a acompanha. «É sempre uma mais valia praticar um desporto, mas este tem esta ligação especial com o animal, que se torna quase um amigo e um companheiro, Em qualquer outro desporto, eu erro e a culpa é minha. Aqui, às vezes o cavalo não está bem e temos de saber aceitar, porque muitas vezes não depende totalmente de nós. Este desporto dá-nos lições de vida todos os dias. Quem experimenta provavelmente vai ter um problema, porque dificilmente vai largar. Por isso, aconselho vivamente quem tenha possibilidade a partilhar esta paixão.».