A caminho dos Jogos Olímpicos de Paris, o Maisfutebol lança uma série de conversas com atletas portugueses já qualificados. São 46 até agora, ainda com várias modalidades por definir. Estas são as suas histórias.

Samuel Barata vai disputar a maratona em Paris. Correu muito para lá chegar. Milhares de quilómetros nas pernas, muitas competições, muitos treinos. Acumulou experiência e evoluiu a treinar junto dos melhores. Foi essa ambição que o levou a fazer vários estágios no Quénia, lá onde nascem muitos dos grandes atletas de longa distância do mundo.

«Há um espírito brutal quando se treina lá. Muitos dos melhores atletas do mundo nasceram nessa zona. É uma pequena vila, onde praticamente toda a gente corre. Há centenas e centenas de atletas a correr todo o dia na rua, há um grande espírito de treino», conta, a falar sobre os tempos que passou em Iten, uma localidade perto de Eldoret, a 1400m de altitude. Essa experiência, tal como os estágios com atletas de elite na Europa, fez toda a diferença na abordagem de Samuel Barata à competição.

«Abrir a mente» no Quénia, entre os melhores

«Ter oportunidade de treinar com atletas que em teoria são melhores do que eu, fazer o mesmo treino que eles, ou melhor, faz-me acreditar que posso conseguir também resultados do mesmo nível. Às vezes nós temos o potencial e por vezes não temos a capacidade mental, temos tendência para nos inferiorizarmos em relação aos outros. O facto de ter estado no Quénia abriu-me a mente e deu-me mais confiança.»

Essa evolução traduziu-se em resultados, com ponto alto na qualificação para Paris. Agora, é tempo de preparar a maratona olímpica. No fim de semana passado, Samuel Barata correu os 10000m em Londres, superando a sua melhor marca pessoal na distância e conseguindo o sexto melhor registo português de sempre, com 27.48,67m. Em junho correrá nos Europeus de atletismo, fará também uma meia-maratona em Roma e, depois, tem a meta em Paris no horizonte. Está a correr dentro dos planos, diz. «Depois de conseguir a qualificação, eu e o meu treinador optámos por não forçar muito, porque tínhamos o objetivo dos Jogos Olímpicos. A ideia é fazer um pico de forma agora entre junho e agosto. O treino está a correr bem e acho que se não tiver azar vou chegar em boa forma aos Jogos.»

Quando fala com o Maisfutebol, o atleta português está a cumprir outro estágio de altitude, agora em St. Moritz, nos Alpes suíços. Curiosamente, no país onde nasceu – perto de Lausanne, para onde os pais tinham emigrado. Tinha cinco anos quando a família regressou a Portugal e foi viver para a «terrinha», como ele diz. Bouça, Cortes do Meio, no concelho da Covilhã.

Entre o futsal e o atletismo, ganhou a corrida

Foi lá que começou a fazer as primeiras corridas. No início, dividia-se entre o atletismo e o futsal. «O clube da terra, o Grupo Desportivo de Animação Cultural da Bouça, estava meio parado e o David Bizarro, o meu primeiro treinador, pegou na coletividade e iniciou o atletismo e também o futsal. Eu entrei nos dois, por pura brincadeira, quando tinha 12 anos.»

Os resultados no atletismo acabaram por facilitar a escolha. «Joguei uma época de futsal e ia às provas de atletismo sem praticamente treinar. Como qualquer miúdo também joguei à bola e gostava de ser jogador, mas tudo mudou quando percebi que tinha algum talento no atletismo e que se continuasse a trabalhar podia chega longe. Comecei a ganhar provas a nível regional. No ano seguinte dediquei-me só ao atletismo, fiquei em quinto lugar no meu primeiro Nacional e foi uma bola de neve.»

Em paralelo, continuou a estudar. O que o levou para Lisboa. «Fui para a Faculdade de Ciências para tirar a licenciatura em química e fui convidado para o Benfica e também para o grupo de treino do professor Pedro Rocha.

Da «terrinha» a Lisboa e à licenciatura em química

Essa mudança não foi fácil. «Primeiro, foi a adaptação à cidade de Lisboa, porque eu vinha da terrinha. Era mesmo sair da zona de conforto», recorda. Depois, as dificuldades em encontrar o equilíbrio entre os estudos e o treino. «Tenho noção que prejudiquei ambas. Depois comecei a perceber que tinha de treinar mais e se calhar estudar menos, comecei a fazer menos cadeiras e a encontrar o tal equilíbrio.»

É difícil, e leva muitos jovens a desistirem da alta competição, nota Samuel Barata. «Tenho muitos colegas que eram bons atletas, chegaram à Faculdade e acabaram por abandonar a modalidade, porque preferiram dar o melhor de si nos estudos.»

Não é fácil viver do desporto em Portugal. «Nas modalidades sem ser o futebol ganha-se pouco dinheiro e até chegar a um nível em que se ganhe para sobreviver demora muito tempo. Muita gente não consegue esperar. Eu esperei, felizmente consegui chegar cá. Também tive um apoio familiar muito grande. É preciso ter sorte, não haver lesões, ter uma família que ajude, um clube que ajude.»

«Há dias em que o corpo não quer»

Samuel Barata passou por várias distâncias e a maratona acabou por ser a evolução natural, percebendo que tinha características físicas para fazer longas distâncias. «A partir dos 25 anos percebi que o meu potencial podia ser ainda maior se treinasse para a meia ou para a maratona», diz, falando sobre os desafios da distância mais longa, Aqueles 42 quilómetros levados ao limite requerem também uma grande preparação mental. «É preciso estar muito bem mentalmente, sobretudo na preparação para a maratona, que é muito exigente. O dia da maratona é a última etapa. Ao longo de todas aquelas semanas anteriores em que se tem de treinar muitos quilómetros, repetir muito treino, em que se constrói a distância - porque a distância tem de ser construída -, é preciso estar muito bem mentalmente. Porque há dias em que o corpo não quer e a gente tem de lutar contra isso.»

Samuel Barata vai ser o primeiro representante português na maratona olímpica desde o Rio 2016. Portugal tem longa tradição na distância, tem o campeão olímpico Carlos Lopes, mas as referências têm sido poucas nos últimos anos. O que se explica por várias razões, diz o atleta português.

A evolução por fazer em Portugal

«A exigência das marcas está a ser cada vez mais difícil. A marca de qualificação para os Jogos de Paris era 2h08m. Há quatro anos era 2h11m, há oito era 2h13», nota. Durante muitos anos, diz, Portugal não acompanhou essa evolução. «Em Portugal treina-se muito, mas se calhar não com tanta qualidade. O treino hoje é completamente diferente do que se fazia há 20 anos, os equipamentos que se utiliza agora também permitem isso, e acho que em Portugal essa evolução não foi tão grande como noutros países. É preciso treinar muito e em Portugal é difícil porque não se ganha tão bem e os atletas não querem apostar nisso. Há um conjunto de fatores que contribuiu para que durante alguns anos não tivéssemos atletas de nível, sobretudo na maratona.»

Apesar disso, Samuel Barata diz que já há bons sinais no atletismo de longa distância em Portugal. «Há aí uma fornada de miúdos, geração que vem a seguir a mim, que estão com uma mentalidade completamente diferente e creio que o futuro de Portugal poderá ser risonho. São poucos, mas a mentalidade está lá.»

Nas últimas décadas, o crescente domínio dos atletas africanos também mudou por completo o panorama no atletismo de fundo mundial. Isso pode contribuir para alguma desmotivação dos outros atletas, mas é uma realidade difícil de superar, diz o maratonista português. «Nas distâncias intermédias já há uma aproximação, mas na longa distância eles ainda têm vantagem sobre os europeus. Isso contribui, sim. As marcas estão sempre todos os anos a ser batidas, e isso torna também cada vez mais difícil a participação nas grandes competições», constata. «A única maneira de contrariar isso é treinar com eles e treinar nos mesmos locais deles. É por isso que tem de se ir para o Quénia, tem de se estagiar de altitude. Porque é um facto que a nível genético eles são melhores do que nós e os resultados dizem isso.»

Os recordes a cair, acelerados pelas sapatilhas «mágicas»

Atletas como Kelvin Kiptum, recordista mundial que faleceu tragicamente num acidente em fevereiro deste ano, ou o bicampeão olímpico Eliud Kipchoge, esticaram os limites da distância. Nesta altura, já é plausível ver alguém correr em breve a maratona abaixo das duas horas numa prova oficial, estimaSamuel Barata. «Há atletas excecionais neste momento que ainda estão na distância intermédia. Estão a aparecer novos talentos africanos e creio que as duas horas vão cair em breve.»

Essa «aceleração» é potenciada por uma inovação tecnológica. As novas sapatilhas desenvolvidas pelas marcas especializadas estão a fazer toda a diferença. Não apenas em maior velocidade de corrida, mas também na redução do tempo de recuperação. Ele explica.

«Estas sapatilhas têm uma placa de carbono, que as torna super leves e cria um efeito de mola. Como o material utilizado é muito leve, conseguem-se fazer sapatilhas mais altas e mais grossas, que têm grande impulso e um amortecimento muito grande. Dá para correr rápido, e também dá para proteger muscularmente as pernas. Sobretudo na maratona, quando chegamos à última parte da maratona, há um desgaste brutal. Por causa dos impactos dos pés no chão. Mas essa sapatilha retarda a fadiga muscular. Então, é o melhor de dois mundos.»

Os efeitos não se refletem apenas na competição. «Antigamente fazia-se um treino de 30 quilómetros e no dia a seguir estava-se completamente desgastado. Agora, com este material, no dia a seguir os atletas estão muito mais recuperados. É uma grande evolução e sobretudo na maratona notou-se muito.»

A «má experiência» na primeira maratona e uma fase difícil

Antes da maratona, Samuel Barata tentou a qualificação para os Jogos Olímpicos de Tóquio, mas ficou à porta, nos 10000m, «a escassos seis lugares pelo ranking». «A partir da partir daí fiz uma aposta muito séria na maratona e as coisas correram bem», nota, ele que, pelo meio, correu a sua primeira maratona, por sinal na capital japonesa. Não teve um grande resultado, mas serviu de aprendizagem. «Caso as coisas corressem bem iria depois apostar na maratona para os Jogos. Fiz a preparação de maneira mais calma, porque estava a reconhecer a distância e a adaptar-me ao treino. Depois, tive um bocado de azar. No dia da prova estava muita chuva, muito vento. Mas terminei, não desisti. Fiz 2h24m. Aprendi muito com essa preparação. Comecei a conhecer melhor o meu corpo. Porque a maratona é uma aprendizagem. Não fiz um bom resultado, mas com essa má experiência aprendi muito para os anos seguintes.»

Os tempos que se seguiram não foram fáceis. Primeiro, a pandemia e a necessidade de adaptação, tentando manter o ritmo de treino. Depois, ainda em 2020, a doença que vitimou Pedro Rocha, o treinador de Samuel Barata, que era também o coordenador nacional de marcha e corrida. «Deixou-nos em setembro. Foi uma coisa muito repentina.»

Samuel Barata procurou olhar em frente. «Tentei treinar e dar o meu máximo como forma de homenagear o meu treinador.»

Depois de uma fase a treinar sozinho, passou a ser orientado por António Sousa, antigo atleta e técnico com longa experiência. Foi evoluindo, nas várias distâncias e com o foco na maratona olímpica.

2023, ano de ouro… e o recorde que não foi

2023 foi o seu ano de ouro. Em outubro, bateu o recorde nacional da meia-maratona, uma marca que durava há 26 anos. Com 59m40s, foi o primeiro português a correr a distância em menos de uma hora. Em dezembro, chegou a «cereja no topo do bolo», a marca de qualificação olímpica na maratona. Conseguiu-a em Valência, com 2h07m35s, a terceira melhor marca de sempre de um atleta português.

«Fiz uma maratona na primavera e aproximei-me muito da marca de qualificação para os Jogos, com 2h10m. No verão apostei na pista, tentei ganhar o maior ritmo possível para correr rápido. Desde o fim de julho até dezembro foram muitos meses de intensidade de treino, onde tive o meu pico máximo de forma de sempre. Sem dúvida cheguei ao auge e consegui fazer estes resultados. Mas são fruto de muitos anos, foram muitos anos a partir pedra.»

Pelo meio, ainda celebrou a superação de outro velho recorde nacional. Que, afinal, não foi. Em setembro de 2023, Samuel Barata correu os 10km em 27m45s, numa prova de estrada na Roménia. Esse tempo superava a marca de 28m11s que pertencia a Fernando Mamede e durava há 38 anos. A proeza deu que falar. Mas dias mais tarde veio a saber que a marca não ia ser homologada.

Hoje, é com fair play que ele recorda a história. «O meu agente viu que havia uma prova boa na Roménia. Tinha organização espetacular, num local muito bonito, em Brasov, perto das montanhas, um percurso espetacular. Só que não estava bem medido», ri-se. «Foi chato porque estive uma semana a achar que tinha batido o recorde nacional, foi mediático e tudo. Mas passados uns dias a organização disse que a marca não podia ser válida porque não estava bem medida, tinha menos 25 metros. Mas foi uma boa experiência, sobretudo porque competi bem, estava bem e refletiu-se uns meses depois na maratona.»

O objetivo para Paris, numa maratona diferente de todas as outras

Samuel Barata correu muito para chegar aqui. Paris será um grande marco numa carreira que irá continuar depois dos Jogos Olímpicos, mas sem um horizonte definido. Aos 30 anos, o futuro «vai depender de muita coisa», diz. «A minha vida também poderá alterar-se um bocado, porque eu e a minha namorada queremos ser pais. Acho que a partir do próximo ciclo olímpico vou talvez treinar ano a ano, ver como é que o corpo corresponde e ver também a evolução das marcas de qualificação.»

Não sabe o que fará quando terminar a carreira, mas provavelmente o atletismo vai ganhar um treinador, e a ciência vai perder um químico. A aposta na alta competição deixou a formação profissional para trás. Depois da licenciatura, ele inscreveu-se no mestrado, mas não o concluiu. «Perdi o comboio da química. Quando acabei o curso devia ter logo iniciado a carreira, trabalhar num laboratório ou numa empresa, ganhar currículo. Não tenho nada disso, porque optei pela alta competição. É difícil voltar à química. Nunca posso dizer nunca, mas o mais provável é ficar na área do atletismo.»

São reflexões para fazer mais tarde, conclui. «Uma coisa de cada vez, agora são os Jogos Olímpicos, pensar em estar lá bem e depois logo se vê.»

O foco é em Paris. Que terá uma maratona peculiar, diz Samuel Barata, com um grau adicional de incerteza. «A maratona de Paris vai ser muito diferente de qualquer outra. Tem subidas completamente malucas. Entre os 15 e os 30km sobe e desce, sobe e desce. E isso poderá fazer a diferença. Um atleta favorito pode chegar a este tipo de perfil e não se adaptar. É uma prova que tem algumas condicionantes, o que pode ser mau mas também pode ser uma oportunidade.»

Mais incerteza a juntar a uma maratona que é tradicionalmente mais imprevisível. «Uma maratona de verão num grande campeonato é sempre uma oportunidade, porque é completamente diferente das maratonas comerciais», continua Samuel Barata. «Há várias questões a ter em conta. Muitos atletas chegam à maratona de verão em baixo de forma, porque tiveram o pico de forma na primavera à procura das marcas de qualificação. Outra questão tem a ver o calor. Há muitos atletas que não se adaptam. Isso vai ser um grande desafio, também para mim, porque nunca competi numa maratona nessas condições. Estou a trabalhar na adaptação ao calor.»

É a partir de todas estes factores que Samuel Barata define os seus objetivos para Paris. «O mais sincero que posso ser sobre o meu objetivo é que vou tentar ficar na primeira parte da tabela classificativa, nos primeiros 40. Porque eu tenho pouca experiência a correr com estes factores e é a minha primeira experiência olímpica», diz. «Mas tudo pode acontecer. Prefiro ser mais razoável e mais conservador, mas pode haver uma surpresa.»

A pressão da maratona olímpica e os conselhos de Carlos Lopes

Samuel Barata tem consciência do que representa correr a maratona olímpica. Os 42.195 km até à consagração no estádio têm um simbolismo especial, são a essência da narrativa fundadora da história olímpica. Também o têm em Portugal, que já teve dois campeões olímpicos na distância. Ele já falou com ambos e já ouviu conselhos deles, de Rosa Mota e Carlos Lopes.

«A Rosa Mota deu-me força e disse para continuar a treinar e para acreditar. O Carlos Lopes deu-me os parabéns por ter feito marca para os Jogos Olímpicos e deu-me alguns conselhos sobre como devia treinar, sobretudo para me adaptar ao calor. Disse que quando preparou os Jogos Olímpicos de 1984 treinava em horas de muito calor em Portugal, porque era o que ia encontrar na prova. Disse para tentar fazer isso também, para treinar e para acreditar no processo, que tudo é possível.»

É com toda essa bagagem que Samuel Barata chega a Paris. Consciente do que irá viver, mas a tentar manter o foco naquilo que pode controlar. «É o maior palco do mundo. Tudo o que lá acontecer tem uma magia muito maior. É uma maratona como as outras, só que tudo à volta, o envolvimento, a visibilidade, é completamente diferente. Está toda a gente a ver, quem não vê desporto se calhar naquele dia vai ver. É provavelmente a disciplina mais mítica dos Jogos. Mas eu não posso pensar muito nisso, porque traz ansiedade. Tenho de estar focado, relaxado, e fazer o meu trabalho de casa, para chegar naquele dia na melhor forma possível. Se fizer isso, é meio caminho andado para que as coisas corram bem.»