Estórias Made In é uma rubrica do Maisfutebol que aborda o percurso de jogadores e treinadores portugueses no estrangeiro. Há um português a jogar em cada canto do Mundo. Este é o espaço em que relatamos as suas vivências. Sugestões e/ou opiniões para djmarques@mediacapital.pt ou rgouveia@mediacapital.pt

Rafael Floro fez a formação no Sporting e no FC Porto, mas foi na Lituânia que encontrou a felicidade aos 24 anos. Depois de uma primeira experiência, em 2018, no Stumbras, o lateral algarvio regressou ao país no início deste ano para assinar pelo Panevesys, um clube novo, construído sob as fundações do antigo Ekranas em 2015.

Uma equipa modesta, mas que começou a crescer a olhos vistos a partir de maio, quando chegou um treinador português. João Luís, que já tinha treinado o Stumbras e o Zalgiris, na Lituânia, trouxe novos métodos de treino e de jogo, mas também introduziu a batata doce nas refeições do grupo que foi crescendo, a nível desportivo, ao longo dos últimos meses, até surpreender tudo e todos, no final de outubro, com a conquista da Taça da Lituânia diante do tricampeão Suduva. Venha conhecer melhor este lateral português que deixou a sua marca bem vincada no futebol lituano.

Encontrámos Rafael a fazer as malas, ansioso por voltar a Portugal, depois de dez meses sem ver a família e afastado da mulher desde as últimas férias em Itália, em meados de julho.

Como é que correu esta aventura na Lituânia?

- Agora acabou, estou aqui a fazer as malas, depois de amanhã regresso a Portugal. Acabou aqui a época, vamos entrar de férias, mas ainda não sei como vai ser o meu futuro.

Tinhas contrato só para esta época?

- Sim, fizemos um contrato de um ano, eles querem renovar, mas ainda não temos acordo.

Fizeste a formação no Sporting e no FC Porto, foi preciso ires tão longe para conquistar o primeiro título como profissional?

- Sempre lutei por alcançar objetivos. Foi agora na Lituânia, mas antes disso, no Olhanense estávamos muito próximos de ir ao play-off do Campeonato de Portugal, mas depois veio o coronavírus e o campeonato, como se sabe, foi cancelado. Antes disso, também estive para jogar os play-off com o Louletano, mas acabei por sair antes para o Gil Vicente. É verdade que ainda não tinha ganho um troféu, mas andei sempre a lutar por eles.

Já tinhas estado na Lituânia em 2018, no Stumbras, como é que surgiu esta oportunidade de voltares?

- Estava no Olhanense, mas estava à procura de uma oportunidade para jogar mais. Já tinha trabalhado com o treinador do Panevesys no Stumbras, ele queria-me, chegámos a acordo em dezembro e cheguei em janeiro.

O treinador ainda era o moldavo Alexandru Curtianu, o João Luís chegou mais tarde?

- Sim, o mister só chegou em maio, na altura em que fizemos o primeiro jogo para a taça.

Como foi a caminhada para a final da Taça? Quais eram as expetativas iniciais?

- Começamos logo a jogar melhor futebol com o mister João, com mais tranquilidade, depois foi jogo a jogo. Nas primeiras duas eliminatórias apanhámos equipas mais fracas, mas depois apanhámos uma equipa do nosso campeonato, tínhamos empatado na liga 1-1, mas na taça ganhámos 4-0. Depois, na final, calhou-nos o FK Suduva que era o líder do campeonato e tinha sido campeão nos últimos três anos. Já tínhamos feito história no campeonato quando os defrontámos porque empatámos 1-1 e foi a primeira vez que o Panevesys tirou pontos ao Suduva. Na final empatámos 1-1, fomos a prolongamento e ganhámos nos penaltis (6-5).

Antes dos penaltis, como foi o jogo?

- Marcámos primeiro, mas eles empataram logo a seguir, numa grande penalidade no mínimo duvidosa, mas como aqui não há VAR... Depois tivemos mais oportunidades claras do que eles, eles jogam muito à base de cruzamentos. No prolongamento, as duas equipas já estavam muito cansadas, ninguém queria cometer erros. Vínhamos de uma sequência de jogos à quarta e ao sábado. Eu pessoalmente estava bem, estava tranquilo, mas também não queríamos atacar à toa, podíamos sofrer um contra-ataque.

Não houve mais golos, nervosismo nos penaltis?

- Treinávamos sempre penaltis nos treinos. O mister escolhia sempre três jogadores para bater penaltis em todos os treinos. Quando fomos para os penaltis estávamos muito confiantes. É uma lotaria, mas também é preciso qualidade para bater.

Também foste marcar um dos penaltis?

- Sim, eu normalmente aqui bato quase todas as bolas paradas. O treinador de guarda-redes perguntou-me se eu queria bater e eu disse-lhe tenho mais é que bater. Tenho personalidade, claro que queria bater. Estava confiante, bati e entrou.

Como foi a festa a seguir?

- Foi o jogo em que tivemos mais adeptos, aqui também não há muitos, o grande desporto na Lituânia é o basquetebol, mas foi uma grande organização da federação, tendo em conta as restrições da pandemia. O estádio não estava cheio, mas tinha uma bancada bem composta, havia muitos adeptos.

O Panevezys também é um clube novo, foi fundado em 2015, tem adeptos?

- Tem a base do anterior clube, o Ekranes, que era um dos maiores clubes da Lituânia, mas foi à falência. Este é o novo clube da cidade e começa agora a ter mais adeptos, com as conquistas que conseguimos. Alguns adeptos antigos do Ekranes não gostam muito do sucesso do Panevesys. Imaginem que em Portugal um clube grande ia à falência e aparecia um clube novo, não é fácil de aceitar. Mas Panevesys até é uma cidade de futebol, mais do que no resto do país.

Mas como é jogar num clube em que tudo é novo? Ainda agora chegaste e já estás na história do clube...

- É verdade. É um clube novo, mas é um clube sério, os dirigentes são sérios, tudo o que têm dito cumprem, nunca nos faltou nada. O mister João também trouxe uma nova visão.

O que mudou com a chegada do treinador português?

- Trouxe uma nova visão, mais portuguesa, mais moderna. O anterior treinador era moldavo, mas não estava a ter bons resultados e foi embora. O João Luís só chegou em abril ou maio, graças a Deus veio um português. Os treinadores portugueses estão entre os melhores do mundo. Já o conhecia do Stumbras, ele tinha sido lá adjunto.

O futebol mudou muito?

- Mudou bastante. Basicamente meteu o Panevesys a jogar à portuguesa, aqui as equipas jogam um futebol mais à moda antiga, muito físico. Trouxe tranquilidade para os jogadores, completamente o oposto do outro treinador. Começámos jogar melhor futebol, os resultados não surgiram logo, mas o nível das exibições foi subindo. É um processo que demora tempo e o mister teve pouco tempo.

Além dos treinos e das táticas, o que é que o mister João Luís trouxe de novo?

- A batata doce.

Com assim?

- O mister juntou-nos e disse-nos que, como estávamos a ter mais jogos, tínhamos de cuidar da nossa alimentação. Depois perguntou quem é já tinha comido batata doce. Os jogadores lituanos levantaram quase todos o dedo. Quando fomos para o almoço era mesmo batata doce. Eles estranharam muito, olhavam, cheiravam com um ar desconfiado. Eu já comia, a batata doce, é uma fonte de carboidratos, ajuda bastante no desporto. Em Portugal faz-se muito isso, mas aqui ninguém conhecia a batata doce. Foi muito engraçado ver as caras deles.

Um plantel que tem um austríaco, um grego, um colombiano, um japonês e sete brasileiros. Fala-se muito português no balneário?

- Sim, quando é entre nós falamos português, o colombiano também percebe, mas com os outros falamos em inglês.

E como é a cidade de Panevesys, fica ali entre duas capitais, Vilnius e Riga, é uma cidade grande?

- É uma cidade com cerca de 80 mil habitantes, não é uma capital, mas é um a cidade muita tranquila, muitos restaurantes, cafés, mas com a pandemia também não pude ver muita coisa.

Como está aí a situação em relação à pandemia?

- Agora ia disputar-se a final da liga [entre o Zalgiris e o Suduva], mas foi adiada porque havia jogadores com coronavírus. Também há outro clube com vários jogadores infetados. Os números agora estão a crescer com a segunda vaga e estão a pôr restrições, como em Portugal. Só pode haver ajuntamentos com quatro pessoas, a partir das 22/23 horas da noite fecha tudo, como em todo lado.

Mas sentes-te seguro? Estás com a tua família?

- Estou tranquilo. Neste momento estou sozinho. Se a minha mulher viesse para cá era complicado porque ela ia ter de ficar de quarentena e eu também tinha de fazer outra vez quarentena. Foi confuso, mas agora vou voltar. Já não vejo a minha família há quase dez meses e a minha mulher desde as férias em julho ou agosto.

Muitas saudades então?

- Não só da família, mas também do sol de Portugal e da comida portuguesa.

Voltando um pouco atrás, nasceste em Quarteira, onde deste os primeiros passos no futebol?

- Comecei com cinco ou seis anos no Quarteirense, futebol de sete, mas fazia muitos golos. Fomos três vezes campeões do Algarve, marcava muitos golos e comecei a ir às captações do Benfica e do Sporting.

Marcavas muitos golos já como lateral?

- Jogava em todo o lado, à frente ou atrás, mas como tinha um remate forte e era rápido, metiam-me muitas vezes à frente. No primeiro ano no Sporting, já futebol onze, comecei como lateral, mas como era rápido passei a extremo. Tinha lá um treinador, o professor Zeca, que me chamava o Obikwelu. Fiz muitos golos nos primeiros anos do Sporting, mas nos iniciados fui ficando mais como lateral, mas já não jogava tanto.

Cruzaste com vários jogadores que chegaram a internacionais. Ricardo Pereira, João Mário, Ricardo Esgaio, Eric Dier, Bruma, Iuri Medeiros…

- Ainda vou falando com eles todos. Não sou muito de andar atrás, mas vamos mantendo contato. Falo com o Iuri [Medeiros], dividíamos quarto, com o Tobias [Figueiredo] também. Cheguei também a dividir o quarto com o Eric [Dier], mas perdi o contato com ele desde que foi para o Tottenham. Com quem mantive mais contato foi com o Frédéric [Maciel], estive com ele no Sporting, depois mais tarde no FC Porto e na seleção. Falamos quase todos os dias, é como um irmão.

Deixaste o Sporting e voltaste ao Algarve, como surgiu o FC Porto?

- Ainda passei pela Académica, mas não cumpriram com o que deviam e voltei ao Algarve, estive no Louletano e no Inter Almancil, foi aí que me fixei como lateral esquerdo. Ainda era juvenil de primeiro ano, mas já jogava com os do segundo. Fomos à final do campeonato, eu e o Bruma. Foi nessa altura que surgiu o interesse do FC Porto. Estive um mês à experiência, ainda era juvenil, mas fui a um torneio com os juniores, as coisas correram bem e ficaram comigo.

Ainda chegaste a ser convocado para a equipa B, com o André Silva e o Gonçalo Paciência?

- O mister Luís Castro começou a chamar-me já no final da época, mas nessa altura já sabia que ia para o Sheffield Wednesday.

Foi a tua primeira experiência no estrangeiro? Aos 19 anos no Championship?

- Surgiu a oportunidade de ir lá à experiência, falei com o mister Luís Castro e autorizou-me a lá ir treinar três ou quatro dias. Correu muito bem. Depois pediram-me para ficar mais um dia, organizaram um jogo de propósito para me ver jogar, correu muito bem e quiseram assinar comigo. Inicialmente era para jogar nos sub-21, mas o treinador gostou de mim e fui mesmo para a equipa principal. Aos 19 anos estava a jogar no Championship. Hoje em dia o Championship mudou muito, é mais bola no chão, mas na altura era um jogo muito mais agressivo, bola na frente e correr. Mas depois mudámos de treinador e passei a ter menos oportunidades. Dizia que eu era muito novo e mandou-me para os sub-21.

Regressaste a Portugal, mas em 2018 voltas a ter um novo convite para emigrar, para o Stumbras que, na altura, tinha sido comprado por Mariano Barreto.

- Fui contratado por dois meses, fiz doze jogos e marquei dois golos. Acabámos a época em quarto lugar, garantimos a qualificação para a Liga Europa e também fomos à final da taça.

Mas foi um período complicado. O Sindicato de Jogadores chegou a aconselhar os jogadores a não assinarem com o Stumbras, havia salários em atraso...

- Foi na altura em que cheguei, uma semana depois de chegar, havia vários jogadores que queriam sair, mas comigo cumpriram tudo. Acho que deixei uma boa imagem, logo no primeiro mês fui eleito para a equipa do mês e no final do segundo mês fui eleito para a equipa do ano.

Uma experiência, apesar de tudo, curta…

- Sim, foram só dois meses, depois recebi um convite para ir para o Felgueiras, o mister Ricardo Sousa gostava muito de mim. Estivemos quase para subir, mas depois perdemos em Fafe e ficou mais difícil.

E ainda antes de voltares à Lituânia, voltaste mais uma vez a casa…

- Fui para o Olhanense, estava ali perto de casa, era um bom projeto, estávamos em primeiro lugar, mas o Olhanense tinha uma política de apostar nos ativos do clube. Tinham lá outro lateral, o Léo, que jogava mais e eu tive de começar a procurar outro clube.

Acabou por surgir um novo convite da Lituânia

- Às vezes os jogadores têm receio de irem para estes países, mas como já tinha estado no Stumbras e já conhecia a Lituânia foi mais fácil. Não conhecia Pavenesys, tinha estado em Kaunas que é uma cidade maior, mas fui muito bem-recebido. Gostei de tudo, das pessoas, da cidade, do clube, do grupo, correu tudo bem, até ganhei uma taça.

E agora? Quais são as tuas expetativas. O campeonato deve recomeçar em março, pensas voltar?

- Ainda não sei, vou ter de analisar bem, eles querem renovar. Fui um dos laterais da liga que fiz mais golos, tirando um de outra equipa que fez quatro golos, mais dois de penalti, eu fiz três. Os laterais das equipas grandes não fizeram nenhum. Vamos ver.