Reza a história que um dia o crítico de música Jon Landau foi ver um concerto de Bruce Springsteen e escreveu isto: «I saw rock and roll future, and its name is Bruce Springsteen».

Eu um dia fui ver um Benfica-Cruzeiro e não faço ideia do que escrevi na reportagem para «A Bola», mas lembro-me perfeitamente de ver um miúdo magricela de 16 anos passar entre defesas do Benfica para espanto de todos. Não faço ideia quem eram os defesas (William, Mozer, Hélder?), mas ainda hoje sou capaz de fechar os olhos e descrever o lance.

Era jogo particular, em Agosto (3, diz-me o Google) de 1993. A vida dos jornalistas, por essa altura, era saber o que se passava com o faxe do Benfica. Não havia dinheiro, Paulo Sousa e Pacheco tinham ido. Na Luz era enorme a confusão e para Toni e Jesualdo Ferreira era difícil lidar com tudo aquilo. Foi neste contexto que o Cruzeiro apareceu para jogar com o Benfica. Era um tempo em que os dirigentes e os seus problemas pareciam mais importantes do que qualquer jogador. Eles faziam as primeiras páginas, eles e as suas coisas. Mesmo assim, recordo-me de ouvir falar em Ronaldo (e recordo-me do tal lance).

Ronaldo era uma criança. Quem acompanhava o Cruzeiro (jornalistas, empresários) falava muito nele. Não juro que alguém tenha pronunciado a palavra fenómeno. Mas havia expectativa.

O miúdo começou no banco, aliás o lugar para todos os miúdos daquela idade. Tinha apenas 16 anos. Sou capaz de jurar que o jogo foi à tarde. E foi fraco, diz-me a memória, lá ao fundo. Acabou 1-1, o golo do Benfica foi de Mozer. Provavelmente o «lobo mau» já não estava em campo quando Ronaldo fez aquilo. Mas não vou jurar. Se por acaso estava, só aumenta a coragem do miúdo. Ou a inconsciência. Sim, porque fazer aquilo aos 16 anos, no primeiro jogo pelos grandes fora do Brasil, só um predestinado. Ou um louco. O futuro diria, naquela altura eu só vi mesmo o tal lance.

Ronaldo parecia relativamente pequeno visto do alto do terceiro anel novo, onde os jornalistas ficavam. Mesmo assim, entrou e colocou-se entre os centrais do Benfica. De repente, uma bola. Ainda antes do meio-campo, Ronaldo recebe-a, vira-se em direcção à baliza do adversário. Para quem está na bancada de imprensa, é para a direita. Segura a bola. No pé direito, acho. Recorde-me de pensar «O miúdo é rápido». Isto foi um segundo. No outro, imediato, ele está perto de dois defesas do Benfica. Dois homens, fortes, experientes, confiantes, em casa. Tudo se passa muito depressa. Com um toque, Ronaldo mete-lhe a bola por um lado. Abro um pouco mais os olhos. Passar a bola era apenas metade do problema. Estava resolvido. Mas ele, por onde passaria? Sem receio, escolhe o sítio mais improvável: por entre os dois centrais.

Ronaldo sobrevive. Tinha acabado de ver uma cena digna de filme de acção. Num instante de máxima dificuldade, o herói descobre o caminho e triunfa. Bem, a ficha do jogo não guarda nenhum golo de Ronaldo nesse jogo, portanto a coisa deve ter acabado sem um final feliz. Para mim é indiferente. A minha memória guardou apenas aquele instante, aquela opção. Lembro-me de pensar «isto é diferente».

Na altura dizia-se que um dos empresários que acompanhavam o Cruzeiro teria sugerido a venda do passe por um milhão de dólares. Mas também se dizia que o Cruzeiro já sabia o que tinha ali e nunca venderia por tão. Em 1994 Ronaldo foi ao campeonato do Mundo. Tinha apenas 17 anos, nem jogou. Mas já era um fenómeno, algo que todos sabíamos que iria acontecer. Nesse mesmo ano, deixou o Brasil, rumo à Holanda. No PSV teve espaço para se adaptar ao futebol europeu. O resto já todos sabemos: escreveu algumas das melhores páginas do futebol mundial, entrou na galeria dos imortais. E eu, tão ocupado que andava com o faxe da Luz, perdi oportunidade de escrever que tinha visto o futuro do futebol.

PS: Depois de escrever, descobri uma peça da TVI sobre o jogo (o fim do lance foi brutal!). É bom poder partilhar este vídeo.