Foi mais ou menos há dezassete anos que Luís Carlos saiu de casa dos pais.

Ainda adolescente, quase a completar duas décadas, mudou-se para Coimbra, para dar início a uma carreira que o levou a percorrer o país de uma ponta à outra, com três saltos ao estrangeiro.

Hoje tem 34 anos e está de volta ao ponto de partida: ao lugar onde tudo começou. Na casa dos pais, no quarto que foi sempre dele, ao lado das pessoas que o conhecem desde criança.

«Eu vinha cá muitas vezes, estava sempre muito presente por aqui. Nunca esqueci as minhas raízes e nunca mudei o meu comportamento com as pessoas da aldeia durante este tempo. O menino que saiu daqui, foi o homem que regressou. Fui sempre o mesmo.»

Ora Luís Carlos, já se percebeu, é Licá e está de regresso à aldeia onde cresceu, para representar o clube que sempre pintou os sonhos que tinha em criança. O ACDR Lamelas.

Na última temporada esteve na Liga, onde vestiu a camisola da BSAD, esta época deu um salto na imensidão e atirou-se para a Distrital da Associação de Futebol de Viseu.

«A casa dos meus pais é literalmente em frente ao campo do Lamelas. Passa uma estrada à frente e o campo é do outro lado, fica a 50 metros de distância, se tanto. Foi lá que eu aprendi a jogar, ia para lá com os meus amigos e com o meu irmão, na altura ainda era de terra, agora já é pelado, e foi aqui, neste campo, que eu ganhei o gosto pelo futebol», recorda.

«O campo estava sempre aberto, era só entrar e jogar. Muitas vezes, enquanto decorriam os treinos dos seniores, nós íamos para um cantinho no fundo do campo jogar numa baliza pequenina de futebol de cinco, que ainda por aqui anda. Eles estavam a treinar e nós a jogar.»

Por isso Licá cresceu com uma ambição: ser como aqueles homens que via vestirem aquela camisola: a camisola que o enchia de ilusão.

«Quando era miúdo, o meu primeiro objetivo era ser jogador do Lamelas. Esse era o meu sonho. Eram os jogadores do Lamelas que via mais vezes e era como eles que eu queria ser. Claro que também via os jogos do FC Porto na televisão, por exemplo, mas era uma vez por semana. Estes eu via todos os dias e cruzava-me com eles no campo», conta.

«Claro que depois a carreira seguiu outros caminhos e os objetivos mudaram, passaram a ser diferentes, mas quando tudo começou o sonho era esse: ser jogador do Lamelas.»

«Quando entrei em campo foi impossível não me lembrar do menino que tinha o sonho de jogar no Lamelas»

Hoje, por fim, está a cumprir esse sonho.

Não foi fácil, há que o dizer. Licá nunca tinha jogado no Lamelas. Por um daqueles acasos da vida, começou a praticar futebol no Castro, da vizinha Castro Daire, passou depois pelo Social Lamas, também ali perto, e aos 19 anos saltou para a Académica, na altura em que deixou então a casa dos pais.

Por isso o sonho foi sendo adiado e chegou a ficar adormecido.

«Quando entrei pela primeira vez em campo com a camisola do Lamelas, foi impossível não me lembrar disso. Esse Licá menino está cá sempre. É um Licá que durante algum tempo andou esquecido, pela carreira que construiu, mas que estava guardado dentro de mim. Depois de vir para esta terra e vestir a camisola do Lamelas, esse sonho de criança saiu lá de onde estava escondido. E como é lógico, o tempo que passar aqui, sejam três, quatro ou cinco meses, vai ser especial na minha carreira. Em proporções diferentes, claro, mas também especial», frisa.

«O facto de ter jogado no FC Porto foi especial porque é um grande clube, o facto de ter representado a Seleção Nacional uma vez foi muito especial e o facto de agora estar a representar o clube com que sonhava em criança também é especial.»

A pergunta que se coloca nesta altura é: porquê o Lamelas?

Licá garante que não há só uma resposta. Foram vários fatores que se juntaram para permitir este desfecho. No entanto, há uma coisa que o extremo garante. Esta etapa não é um ponto final e ele não regressou à aldeia para acabar a carreira. Na próxima época quer um cube superior.

«Eu já estava há muito tempo parado e, portanto, tinha duas hipóteses: ou pendurava as chuteiras e começava uma nova carreira, fora ou dentro do futebol, ou então agarrava-me a alguma coisa que voltasse a colocar-me no ativo, para estar preparado para o que pudesse aparecer a seguir», começa por explicar.

«O tempo passou. Chegou uma altura em que já não havia grandes escolhas. Ora sendo o Lamelas o clube da minha terra e estando eu parado há tanto tempo, senti que aqui não ia ter uma grande pressão para estar rapidamente em boa forma física. Além disso conhecia as pessoas, sabia que ia ser muito bem integrado, sabia que iam ajudar-me em tudo o que eu precisasse e também teria o apoio da minha família.»

Foi o próprio Lamelas, de resto, que foi atrás de Licá.

Era um sonho também para o clube poder contar com um nome como o do internacional português no balneário, e por isso mesmo foi mantendo contacto ao longo do tempo, com uma ligação privilegiada ao coração do avançado.

«O meu pai faz parte da direção do Lamelas desde que eu me lembro de ser gente», revela.

«Como é lógico, ele falava-me e perguntava como estava a minha situação. Até que chegou um dia em que o clube falou formalmente comigo, porque sabia que estava sem nada e que também podia ser bom para eles. Nessa altura estava a viver em Lisboa. Um dos diretores ligou-me, falámos, eu disse-lhe que um dos meus objetivos era voltar a estar ativo e ele respondeu que me podia ajudar nisso. Espero agora poder ajudar o Lamelas nos objetivos que temos.»

Já estava há muito tempo parado e queria voltar ao ativo para preparar para a próxima época»

Para quem já passou por clubes como o FC Porto, o V. Guimarães, o Estoril, o Nottingham Forest, o Rayo Vallecano ou o Granada, estar agora no Distrital torna-se surpreendente. Pelo menos para quem olha de fora. Mas Licá diz que não tem esse tipo de preconceito.

«Acima de tudo, tento desfrutar de tudo o que a vida me oferece. Há coisas que se oferecem na Liga que não se oferecem na Distrital e há coisas que se oferecem na Distrital que não se oferecem na Liga. O que é importante é ter mente aberta. Claro que as condições não são as mesmas, mas o ser humano tem uma grande capacidade de adaptação a tudo.»

No balneário encontrou, aliás, um daqueles amigos que ia com ele jogar para o campo do Lamelas quando era criança. Hugo Parente, de 33 anos, é o capitão da equipa, é primo de Licá e é um dos melhores amigos de toda a vida.

«No dia em que assinei contrato, o começou a enviar-me mensagens. Então, vens para o Lamelas? E eu respondia: Sim, já estou quase a chegar. E ele nunca acreditou. Dizia para não brincar com ele. E eu sempre a insistir, meio a brincar, meio a sério: Estou a chegar, logo à noite já estou aí a treinar. E ele sempre a repetir que não acreditava. Quando entrei no balneário, ficou muito surpreendido. Houve alguns colegas que não me conheciam e que ficaram um bocadinho tímidos. Até que perceberam que eu estava ali para ajudar e que era mais um no balneário como todos os outros. Temos um excelente grupo.»

Foi por isso que Licá deixou a casa em Lisboa, onde ficou a namorada, e se mudou para casa dos pais e para o quarto onde dormia quando era criança.

«A mudança está a ser tranquila. Os meus pais sabem que preciso da minha privacidade. O meu objetivo não é acabar já, não é ficar já aqui. O meu objetivo é voltar a jogar e g.anhar condição física. Mesmo sendo uma Distrital, cada vez mais estes campeonatos e os jogos no interior são vistos por muita gente, por isso quero sair daqui e tentar alguma coisa maior», frisa.

«Claro que o primeiro impacto foi um choquezinho. Saí de uma equipa profissional para uma equipa em que 99 por cento dos jogadores trabalha de dia e treina à noite. Mas cada vez mais há melhores condições nestes clubes e há treinos com muita intensidade. Para além disso, é o clube da minha terra, é a oportunidade de jogar no clube que sempre apoiei e no campo onde aprendi a jogar. É a Distrital, mas resto é igual: no fundo é futebol e isso é que é importante.»