Há onze anos, Maisfutebol acompanhava com dois enviados-especiais - Nuno Madureira e Hugo Vasconcelos - o seu primeiro Mundial. Era também o primeiro Mundial para uma geração brilhante do futebol português. Mas as coisas começaram a correr mal logo desde o primeiro dia. O jogo com os EUA, a 5 de junho, marcou o início do fim. Desde esse dia, Portugal não voltou a jogar com os norte-americanos. Foi esta a crónica do jogo, tal como o vimos então

Uma derrota inesperada. Uma derrota amarga. Mas, acima de tudo, uma derrota merecida. Com as expectativas de todo um país levadas ao rubro, a entrada em cena da Selecção no Mundial-2002 fez-se com estrondo, mas não pelas razões esperadas. Último favorito a subir ao palco, coube a Portugal fechar o ciclo da primeira jornada da prova. Que terminou como começara, há seis dias: com uma grande surpresa perfeitamente justificada pelo decorrer dos 90 minutos.

A vitória dos Estados Unidos (3-2) até pode ser contestada pela estatística. Portugal teve mais tempo de posse de bola (57/43), mais remates (12/10) e mais oportunidades de golo do que o seu adversário. E não ficou tão longe como isso de um empate que disfarçaria as aparências, depois de uma segunda parte de sentido único. Mas os números não mostram tudo. Quem joga tão mal como os portugueses o fizeram na primeira parte, quem comete tantos erros graves em zonas probidas, não pode legitimamente esperar ganhar um jogo num Mundial.

O pesadelo absoluto

Durante 36 minutos, a Selecção Nacional viveu o mais intenso pesadelo da sua história recente. Mais ainda do que no jogo com a Finlândia - que teve muitos pontos de contacto com este - os portugueses foram submetidos a um indescritível banho de bola, por um adversário que teve como mérito maior a serenidade com que aproveitou sucessões inacreditáveis de falhanços. Entre os 15 e os 35 minutos, então, a exibição portuguesa assemelhou-se àquelas antologias do disparate tão frequentes nos finais de ano televisivos.

O golo sofrido de entrada, no primeiro canto de que os americanos dispuseram, lançou por instantes a ilusão de estarmos a assistir a uma reedição do sucedido no Euro-2000, com a Inglaterra. Mas desta vez havia uma diferença decisiva: contra os ingleses, mesmo a perder por 2-0, Portugal exibiu de entrada uma confiança, uma certeza de passe e uma qualidade de jogo que faziam crer que era o resultado a enganar-se. Em Suwon, perante um público claramente favorável ao fascínio de Figo e companhia, nesses minutos fatídicos o equívoco vestiu sempre de grená.

O problema, que se desencadeou com esse início destastroso, começava na incapacidade para segurar a bola, prosseguia nos inabituais erros de posição na defesa e tornava-se gritante à medida que se acentuava o fosso entre Pauleta e um meio-campo à procura de referências. À incapacidade de Figo e Rui Costa em criar desequilíbrios juntava-se um progressivo desnorte que alastrava pela equipa como uma epidemia, provocando perdas de bola em zonas impensáveis. E com o sorriso espantado de quem recebe prendas imprevistas, Donovan, McBride (excelente dupla) e O Brien entretinham-se a explorar as avenidas abertas no meio-campo luso e que alastravam, por efeito-dominó, às imediações da área.

Ao calvário português nem sequer faltou a inacreditável partida de flippers (Jorge Costa-Rui Jorge-Petit-Donovan-Jorge Costa-Baía) do segundo golo (29 m). O terceiro, sete minutos depois, surgiu com a maior das simplicidades, numa altura em que os portugueses já só queriam encontrar o botão de restartno jogo e se descobriam incapazes de efectuar com acerto o passe mais banal.

Faltava bom senso e um ponto de equilíbrio a meio-campo (características a que facilmente se associa o nome de Paulo Bento) bem como o brilho das individualidades, apesar dos esforços estéreis de Sérgio Conceição e João Pinto. Num jogo tão atípico, veio então o mais inesperado dos golos, com Beto - única escolha surpreendente de Oliveira, e que contra todas a lógica esteve incomparavelmente melhor a atacar do que a defender - a fuzilar Friedel com uma recarga de raiva, após um primeiro remate seu desviado pelo omnipresente McBride.

O lance teve o dom de pôr fim ao estado de graça dos yankees, mas não resolveu por encanto os problemas da Selecção, que continuava a abusar dos passes longos. Pauleta, desinspirado, não conseguia aproveitar os raros lapsos dos centrais americanos, e jogo dos tugas continuava a perder-se pela linha do fundo, quando não pela porta dos fundos.

Apesar de tudo, o intervalo chegou com Portugal a receber dos americanos a chave do jogo. Havia 45 minutos para perceber se ainda havia tempo de saber o que fazer com ela. Com a certeza de que nunca, até à data, uma equipa a perder por dois ao intervalo conseguira vencer um jogo do Mundial.

Tanto tempo à espera da maré cheia

Esperava-se que Oliveira mexesse na equipa, mas o seleccionador preferiu reiterar a confiança no onze, esperando que a maré continuasse a encher, como no final do primeiro tempo. Foi um período de expectativa fatal. Para o clic no jogo ser definitivo era indispensável que o segundo golo madrugasse. Mas a Selecção, convidada a acampar no meio-campo adversário, conseguira estancar a hemorragia, mas não teve o esclarecimento, nem as pernas necessárias para repetir a proeza dos magriços em 1966.

Só aos 68 minutos o seleccionador decidiu chamar Paulo Bento, um nome recordado com saudade durante o pesadelo inicial. O bom senso e o equilíbrio posicional do médio do Sporting eram, talvez as características mais em falta na exibição lusa. E, talvez por acaso, talvez não, o segundo golo chegou pouco depois, desta vez com a sorte a piscar o olho aos portugueses: Agoos desviou para a sua baliza, num belo movimento de ponta-de-lança, um cruzamento aparentemente perdido de Pauleta.

Era o momento do assalto final, e esperava-se a entrada de Nuno Gomes, que aquecia desde o intervalo. Mas, mais uma vez, Oliveira optou por esperar para ver. E a pressão portuguesa, que durante escassos minutos pareceu capaz de operar o milagre, foi minguando, minguando, até sumir pela porta dos fundos. A entrada do número 21, de tão tardia, nada mudou, porque nessa altura já nem Sérgio Conceição nem João Pinto - os mais regulares e esclarecidos - tinham forças para alimentar a dupla de avançados.

O jogo, tão cheio de acontecimentos inesperados, terminava com um anticlímax inexplicável. Os americanos podiam fazer a festa pela sua vitória mais retumbante dos últimos anos, enquanto os portugueses - obrigados a ganhar os dois jogos que lhes faltam para evitar o adeus antecipado - esfregavam os olhos estremunhados, perguntando-se a si mesmo se o pesadelo terminara ou se isto tinha sido apenas o princípio. Nenhuma queixa lusa em relação ao árbitro equatoriano, que terá mesmo perdoado um segundo cartão amarelo a Beto a meio da segunda parte.

Ficha do jogo

Estádio de Suwon (Coreia do Sul), 37306 espectadores
Árbitro: Byron Moreno (Equador).

EUA: Brad Friedel; Pope (Llamosa, 80), Hejduk, Agoos, Mastroieni, Sanneh, Stewart (Jones, 46), O Brien, Donovan (Moore, 75), Beasley e McBride.

PORTUGAL: Vítor Baía; Beto, Fernando Couto, Jorge Costa (Jorge Andrade, 73) e Rui Jorge (Paulo Bento, 69); Petit; Figo, João Pinto, Rui Costa (Nuno Gomes, 80) e Sérgio Conceição; Pauleta.

Ao intervalo: 3-1

Marcadores: O Brien (4 min), Jorge Costa (pb 29), McBride (36), Beto (39) e Agoos (pb 71).