O futebol tem estas dicotomias. Se, para muitos, é o sonho de uma vida, uma meta desde uma infância a imaginar como seria fazer um golo de levantar um estádio ou ter milhares de pessoas a gritar o seu nome, para outros é um trabalho como outro qualquer.

Há vários exemplos. Assou-Ekotto, por exemplo. O camaronês até já jogou um Mundial, provavelmente o topo da carreira, embora tenha deixado tão má imagem que é mais fácil recordar as cenas lamentáveis da agressão ao colega Moukandjo do que qualquer jogada digna de relevo.

O lateral do Saint-Etienne é, então, um exemplo de um jogador que assumiu publicamente não gostar do futebol. Quando estava no Tottenham, na altura treinador por André Villas-Boas, disse mesmo que não conhecia Paulinho, que iria reforçar a equipa. «Não é nada de mais. Também já cumprimentei o Van der Vaart sem saber quem ele era», assumiu. Pior a emenda que o soneto?

Há mais casos. Vukcevic, ex-Sporting, também assumiu encarar o futebol como uma profissão e o inevitável Mario Balotelli perguntou por que havia de festejar um golo se um carteiro não o faz quando entrega uma carta?

Hoje adicionamos um novo personagem a esta lista. Menos conhecido, mas com uma personalidade tão ou mais interessante. Chama-se Rodéric Filippi, tem 26 anos, joga no Ajaccio, da Liga francesa, e não gosta de futebol. Detesta para sermos mais precisos. «Mal tento ver um jogo fico com vontade de disparar sobre mim», assume. Para que não restem dúvidas.

Filippi é o inverso da estrela moderna do futebol. Visual «hipster» a fazer lembrar um lenhador, alcunha que ganhou em França, pela barba vasta, uma imagem de marca que perdeu recentemente. Não gosta da fama, consequência do sucesso no desporto mais importante na Europa.

Percebe-se a que nível, numa resposta sobre o que sente quando lhe pedem um autógrafo. «É sempre bom, mas não percebo qual é a ideia. Um autógrafo não passa de um rabisco numa folha de papel. E nós somos só jogadores de futebol, não estamos a salvar o mundo. É como se amanhã fosse ter com o padeiro e lhe dissesse: o seu pão estava realmente bom, dê-me um autógrafo por favor», ironizou.

A declaração surgiu numa entrevista ao site «So Foot», publicada em abril deste ano quando o Ajaccio estava perto de subir à Liga principal francesa. Conseguiu-o.

Filippi, aliás, teve a honra de se estrear aos 26 anos no principal escalão do seu país no Parque dos Príncipes, mítico estádio da capital. No final limitou-se a dizer sobre o momento: «Gostei da relva, estava boa.»


«Do PSG só conhecia mesmo o Ibrahimovic»

O comentário de Filippi sobre a relva parece simplório. E é. Mas a verdade é que se lhe perguntassem algo sobre o rival que enfrentou, o PSG, a mais poderosa equipa francesa da atualidade, pouco saberia dizer. «Só conheço o Ibrahimovic», comentou na mesma entrevista.

Normal para quem os jogadores de futebol não são ídolos nem referências. São colegas de trabalho que não faz questão de conhecer.

«Não cresci a admirar jogadores. Conhecia alguns. Conhecia o Zidane, Beckham ou Drogba mas só mesmo porque estavam em todos os jornais», explicou.

Aqui chegados, convém perceber como alguém com tanta aversão ao futebol se torna…futebolista profissional. Filippi jogava com as outras crianças, mesmo que não visse os jogos a sério na televisão. Quando a bola não rolava e os colegas falavam do jogo grande da noite passada, sentava-se e ouvia enquanto aguentava. «Chegava a adormecer», confessou.

Com 11 anos ainda só jogava futebol no recreio mas um desafio de um amigo para uma experiência num clube local. Morava em Six-Fours-les-Plages, perto de Toulon. Longe de imaginar que se tornaria uma referência do clube mais emblemático da capital da Córsega.

A experiência correu bem e ficou. O feitio fez a diferença. Mesmo não sendo apaixonado por futebol, Filippi tem duas características que nenhum treinador enjeita: um, detesta perder; dois, é obediente.

«Tecnicamente tenho tijolos em vez de pés. O treinador mandava-me seguir o avançado da outra equipa e eu não o deixava tocar na bola. Fazia o que me pediam, jogava em equipa», explica.

A receita foi suficiente para ter sucesso. Porque à disciplina em campo, Filippi junta disciplina fora dele. Ou não…

«Não tenho propriamente um estilo de vida saudável. Vivo bem. Temos sempre orientações do treinador, nomeadamente com o peso, mas eu não posso dizer que sou um modelo de profissional. Sou o tipo de pessoa que é o último a chegar ao treino e o primeiro a ir embora. O treinador insiste comigo, quer que eu dê o exemplo aos outros, mas eu prefiro ir para casa estar com o meu filho»
, remata.

Um golo frente ao Nice (já sem barba):




«Um amigo falou-me de trabalhar como camionista e fiquei logo interessado»

Filippi não tem problemas em assumir que «bebe uns copos» durante a semana de trabalho, mas sublinha que não se enche de álcool noite após noite. É mais uma questão de perfil do que de exageros. Ainda assim, sabe que não é um comportamento que ajude a aumentar a amplitude da carreira.

Nem será um problema. Filippi quer jogar enquanto conseguir e tem planos bem definidos para o que quer fazer depois. Longe do futebol. Se não for o suficiente, por ventura, poderá acelerar mais ainda mais longe. A ambição do central do Ajaccio passa por ser camionista.

Conta o próprio: «Tenho um amigo que trabalha na Gaz e me explicou como é o trabalho de motorista de pesados. Fiquei logo interessado. Já me informei e só não começo agora a fazer a formação porque tenho de estar livre das 8h às 15h durante um mês e meio para conseguir a licença de condução.»

Até lá, o remédio é um: jogar futebol. E ajudar o Ajaccio a dar a volta ao desastrado início de temporada: sete derrotas e três empates nos dez primeiros jogos. Na 11ª ronda, emergiu Filippi: um golo em cada baliza e vitória frente ao Nice, de Ricardo Pereira, por 3-1. Este sábado mais um triunfo, frente ao Bordéus, novamente com Roderic Filippi em destaque. Agora porque…foi expulso.

As tais dicotomias do futebol que falávamos no início: por muito que queira o manto da invisibilidade, os holofotes não desviam dele.

O autogolo contra o Nice de Ricardo Pereira: