Durante dois anos o jornalista Jean-Philippe Leclaire, grande repórter do L¿Équipe, dedicou-se a tempo inteiro a investigar as circunstâncias que rodearam a tragédia do Heysel, em 1985. O resultado é um livro «Le Heysel- une tragédie européenne» (19 euros), publicado pela editora francesa Calmann-Lévy em Maio passado, quando se completaram 20 anos sobre a morte de 39 espectadores na final da Taça dos Campeões entre Juventus e Liverpool, em Bruxelas.
As 319 páginas da obra revelam um trabalho jornalístico de fôlego, com mais de cinquenta entrevistas a participantes ou testemunhas directas do drama: jogadores, dirigentes, políticos, polícias, socorristas, jornalistas, ex-«hooligans», vítimas ou familiares de vítimas. Mas nem só de relatos na primeira pessoa se alimenta o livro: as 48 mil páginas do processo, depositadas no palácio de justiça de Bruxelas, servem de base para uma descrição minuciosa do enquadramento legal do sucedido antes, durante e depois da tragédia.
Uma bibliografia criteriosa e seleccionada dá-nos o enquadramento cultural, social e histórico dos adeptos dos dois clubes e pistas importantes para se entender o fenómeno do «hooliganismo», tal como existia em meados da década de 80. A consulta exaustiva dos arquivos de jornais, revistas e estações de TV completa as fontes de informação de Jean-Philippe Leclaire, que tem o mérito de gerir o seu conhecimento dos factos ao longo de uma estrutura acessível mas nunca superficial: mesmo os pormenores mais romanescos da sua escrita são sustentados e legitimados pelos depoimentos de quem viveu o drama.
De leitura envolvente, mesmo nas partes mais sombrias ¿ a descrição das cargas e das circunstâncias em que as vítimas foram ficando sufocadas após a queda do muro do sector Z, as formalidades legais com a identificação e repatriamento dos corpos ¿ ou mais áridas ¿ as subtilezas jurídicas que antecederam o julgamento, as particularidades do código penal belga ¿ «Le Heysel», um livro assumidamente escrito contra o esquecimento, deixa-nos com uma inevitável sensação de mal-estar.
Não apenas pela contabilidade dos mortos, pelo drama das famílias ou pelo vazio da cultura da violência, tão próxima da lógica territorial de todas as claques. Mas principalmente porque se torna evidente que o sacrifício de 39 vidas partiu de uma cultura de irresponsabilidade, de amadorismo e de pequenas cumplicidades nas cúpulas dirigentes, de todos aqueles que tinham por missão organizar a final, prevenir os confrontos e reprimir os incidentes antes de se tornarem incontornáveis. Um cenário reforçado pelo obsceno jogo do empurra com que as autoridades procuraram delegar culpas e responsabilidades ao longo do processo e julgamento.
Os capítulos finais lembram-nos que, vinte anos depois, a tragédia do Heysel alterou radicalmente o panorama do futebol europeu, bem mais profundamente do que pode pensar-se à primeira vista. Das regras de segurança nos estádios aos modelos de organização de jogos, da cooperação com as forças policiais à diluição das raízes culturais das equipas nas suas cidades, quase tudo mudou daí para cá. Na maioria dos casos, para melhor. Mas não em todos.
Nos escombros do sector Z ficaram os restos de um futebol de raízes populares fixadas no século XIX. Em seu lugar nasceu uma indústria, cada vez mais impessoal e modernizada, com cadeiras de plástico colorido e sem lugares de peão. Olhando à volta, com exemplos bem próximos de nós, não é certo que os seus capitães e administradores sejam melhores e mais preparados do que os de há vinte anos.