Na zona mista do Teatro Scala de Milão, Virgil Van Dijk desarmou o assunto em poucas palavras. «Fiquei perto, mas não podem comparar-nos como jogadores. Messi teve uma época fantástica e é talvez o melhor jogador de sempre. Mereceu», disse, para soltar uma gargalhada quando lhe perguntaram nessa conversa com o canal holandês NOS se para o ano é que é: «Ah ah, vou tentar.» Simples, descontraído. Às vezes demasiado descontraído, disseram-lhe em tempos. Foi assim que Van Dijk chegou onde poucos chegaram, um longo caminho para o adolescente que acumulou os treinos com um emprego a lavar pratos para ganhar alguns trocos e esteve entre a vida e a morte.

Aos 28 anos, Van Dijk chegou ao topo. Campeão europeu com o Liverpool, melhor jogador da época na Premier League, finalista da Liga das Nações com a Holanda, melhor do ano para a UEFA, segundo melhor do mundo no prémio da FIFA, ganho por Lionel Messi. E o ano ainda não acabou, em dezembro será conhecido o vencedor da Bola de Ouro.

Van Dijk nasceu a 8 de julho de 1991 em Breda, na Holanda. Com raízes no Suriname, de onde vem a família da mãe, começou cedo a jogar à bola. Começou no WDS, um pequeno clube de Breda. «Aos sete anos era maior e mais forte que os outros. Estava sempre em posição central, dirigia o jogo e tratava de tudo lá atrás», contou ao Daily Mirror John van den Berg, um dos treinadores do clube na altura. Também contou que Van Dijk não esqueceu as raízes e em 2017, quando jogava no Southampton, foi visitar o clube e oferecer uma camisola da Holanda autografada: «Veio por consideração pelo seu primeiro clube e pelas pessoas que o ajudaram.»

Frank Brugel, que trabalhava no Willem II e tinha um filho a jogar ao lado de Van Dijk, cedo percebeu o talento e fez a ponte. Aos 10 anos, Virgil mudou-se para o Willem II, ainda perto de casa. Foi lá que passou os anos da formação, parte deles a… lateral-direito. E sem se destacar por aí além. Até crescer, literalmente. É o próprio Van Dijk quem o conta. «Aos 16 anos era um lateral-direito lento e não era suficientemente bom para jogar a central. Nunca fui um jogador que se destacasse até jogar pelos sub-19 e tornar-me capitão. Depois tudo correu muito melhor», disse numa entrevista à BBC em que contava também que foi um salto de crescimento a fazer a diferença: «No verão em que fiz 17 anos, cresci 18 centímetros.»

Lavar pratos por 4 euros à hora

Van Dijk ainda era um miúdo à procura de oportunidades e foi por essa altura que decidiu arranjar um part-time. Foi trabalhar para um restaurante em Breda, o Oncle Jean, a lavar pratos e a ganhar quatro euros à hora. «Treinava à segunda, terça e quinta-feira, jogava ao sábado e trabalhava à quarta e à sexta-feira das seis à meia-noite», contou à BBC: «Trabalhava porque queria sair e ir à cidade ao sábado à noite. Ganhava talvez 350 euros por mês e estava satisfeito com isso, podia ir ao McDonalds e oferecer coisas aos amigos. Depois comecei a perceber como o dinheiro pode ser importante, mas não é a coisa mais importante.»

A evolução de Van Dijk não foi suficiente para convencer o Willem II a oferecer-lhe um contrato profissional, ou a levá-lo para a equipa principal. Um erro de que muitos no clube se arrependem. O treinador do Willem II por essa altura, Fons Groenendijk, admite que nem chegou a ver o jovem central que tinha na formação. «Ele estava nos sub-19, tinha feito 17 anos quando eu assumi o clube. Estávamos em risco de descida», contou ao jornal Independent: «A certa altura ouvi dizer que havia um par de miúdos com talento nos sub-19, mas nunca é uma boa ideia levar miúdos para uma luta pela permanência. Disse-se que eu não quis pô-lo a jogar, mas ele nunca esteve sequer na minha equipa. Nunca fez um treino com a primeira equipa.» 

O erro holandês e a evolução do miúdo «demasiado descontraído»

Mesmo quem trabalhou com Van Dijk reconhecia a qualidade, mas apontava-lhe falhas. «Ele era forte fisicamente e tinha um talento natural para desarmar os adversários na altura certa. Posicionalmente era impressionante. Mas havia espaço para melhorar.» As palavras são de Jan van Loon, antigo diretor da formação do Willem II, à Four Four Two: «Às vezes podia parecer demasiado descontraído. Alguns treinadores da formação até o achavam preguiçoso.»

Foi o Groningen o clube que decidiu apostar em Van Dijk, aos 19 anos . E trabalhar nessas limitações. Dick Lukkien era o treinador adjunto e falou à Four Four Two sobre esses tempos. «Às vezes dava demasiado espaço aos adversários. Muitas vezes compensava isso com a sua velocidade, mas dissemos-lhe que se queria chegar ao topo tinha de mudar isso. Também lhe dissemos que devia fazer melhor a ligação com o meio-campo quando tínhamos a bola, porque isso criava um vazio que dava demasiado espaço ao adversário se recuperasse a bola. Nesse aspeto ele evoluiu de forma impressionante.»  Van Dijk tinha uma qualidade importante, disse um dia Robert Maaskant, que o treinou na última época no Groningen, citado numa reportagem da ESPN: disponibilidade para aprender.

Teve um período considerável de adaptação no Groningen, acabando por se estrear na equipa principal no final da primeira época. A 1 de maio de 2011, perto de completar 20 anos, frente ao Den Haag. Na época seguinte ganhou lugar em definitivo, fez 23 jogos. Mas em abril tudo esteve perto do fim.

No hospital a lutar pela vida: «A certa altura tive de assinar papéis. Como um testamento»

Virgil sentiu-se mal num treino, queixou-se de fortes dores no abdómen. Foi levado ao hospital, mas mandaram-no de volta para casa depois de exames que não detetaram nada de anormal. As dores intensas persistiam e foi a mãe de Van Dijk que decidiu insistir. Conduziu duas horas, de Breda a Groningen, para procurar uma segunda opinião noutro hospital. Aí, o diagnóstico confirmou o pior cenário: uma peritonite e uma infeção nos rins. Teve sorte, segundo os médicos. «Disseram-me que alguém menos em forma ou mais velho não teria sobrevivido», contou Van Dijk à Voetbal International.

Teve que encarar o fim. «Pela primeira vez na minha vida o futebol era uma questão lateral. Tratava-se da minha vida. Eu e a minha mãe rezámos e falámos sobre possíveis cenários.» Chegou a fazer uma espécie de testament: «A certa altura tive de assinar papéis. Como um testamento. Se morresse, parte do dinheiro iria para a minha mãe. Claro que ninguém queria falar daquilo, mas tinha de ser.»

Perdeu muito peso, mas ao fim de um mês estava a trabalhar para recuperar. E na época seguinte voltou ao seu nível. No fim dessa temporada, deixou o Groningen. Não para um grande da Holanda. Nenhum deles se mostrou suficientemente interessado. Foi o Celtic quem o descobriu e decidiu fazer a aposta. Terá pago cerca de três milhões de libras pelo passe de Van Dijk, há seis anos.

Da discreta transferência para o Celtic a central mais caro do mundo

A Holanda demorou mesmo a descobri-lo. Foi só depois de se ter afirmado na Escócia que chegou à seleção principal da Holanda: em 2015, com 24 anos. A partir daí estava lançado. Ao fim de duas épocas e meia no Celtic, o seu compatriota e agora selecionador Ronaldo Koeman levou-o para o Southampton, num negócio estimado em 15 milhões de euros.

O grande salto aconteceu no início de 2018. O interesse do Liverpool foi assumido logo na segunda época de Van Dijk em Southampton, mas a transferência só se consumou a meio da época 2017/18. Custou 85 milhões de euros, o valor mais alto de sempre pago por um defesa. E rapidamente se afirmou como referência dos «reds» de Jürgen Klopp, que chegaram à final da Liga dos Campeões nessa temporada, para festejarem mesmo o título europeu um ano depois.

Van Dijk lida com a fama de forma tranquila. Diz que leva uma vida pacata, entre a família e um círculo estreito de amigos. «Gosto de manter as coisas simples. Para quê complicar? Para quê ser negativo quando podemos gozar a vida e ser positivos? Aprendi isso ao longo dos anos», disse na entrevista à BBC, onde contou também que já visitou várias o Suriname, para conhecer a família da mãe, e onde explica parte do seu sucesso e de outros jogadores holandeses que têm as mesmas origens com uma característica comum que vem dessas raízes caribenhas: «Acho que somos descontraídos. É a forma como pensamos.»