A guerra civil de 15 anos (1991 a 2006) dizimou os sonhos de milhões de somalis. Cidades arrasadas, famílias na miséria, governos corrompidos, revoluções e neo-revoluções em nome não se sabe bem do quê e de quem. 

O futebol, consequência do deserto civilizacional que o rodeava, pagou um preço caríssimo. Clubes extintos, futebolistas forçados a fugir, um país entregue à anarquia e aos bandidos. 

Na capital, Mogadíscio, os senhores da guerra ainda reinam. Não há condições para a realização de jogos da seleção nacional de futebol. A equipa vai competindo sem grande sucesso, mas com uma federação ambiciosa e um conjunto de atletas interessante, quase todos descendentes de somalis acolhidos por outros países. 

A seleção da Somália teve, de resto, de esperar até 2019 para festejar a primeira vitória numa fase de qualificação para um Campeonato do Mundo. Aconteceu em setembro, frente ao Zimbabwe, e o melhor jogador em campo nesse jogo histórico chama-se Mohamud Ali, um herói nacional, pois claro. 

Antes de conhecermos o nosso protagonista, anónimo instrutor de condução em Manchester, vale a pena espreitar o melhor momento de sempre do futebol somali, obtido num campo sintético do Djibouti, um país vizinho.   

VÍDEO: o golo histórico da Somália (1m32s)

 

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Mohamud Ali, 25 anos, defesa central do modestíssimo Curzon Ashton, equipa da National League North, nascido na Holanda, sangue somali a correr nas veias. 

O irmão de Mohamud, Ahmed, cruzou da esquerda e Anwar Shakunda cabeceou para o golo. A Somália celebrou, Mogadíscio esqueceu por uma noite os horrores da guerra. Percebe-se. A equipa vinha de 19 derrotas seguidas e vergou uma seleção situada 90 lugares acima no ranking FIFA. 

«Nessa noite tivemos de estrear sete jogadores. Reunimo-nos dois dias antes, alguns de nós nem se conheciam. Mas quando cheguei ao estádio e vi a postura da equipa de Zimbabwe, a cantar e a rir antes do jogo, percebi que tínhamos hipóteses», contou Mohamud ao Guardian.

«Os meus pais tiveram de fugir da guerra na Somália, por isso nasci e fui criado na Holanda. Ainda joguei futebol semi-profissional lá, nos Alphense Boys, mas aos 18 anos mudei-me para Manchester. O meu pai teve uma boa proposta de emprego.»

O futebol foi sempre o ponto de ligação às comunidades onde vivia. «Passei a jogar numa equipa chamada Northwich Victoria e em 2015 fui contactado por responsáveis da federação de futebol da Somália. O meu irmão já estava a jogar na seleção e eu enviei-lhe vídeos meus. Gostaram do que viram e convidaram-me.»

«Nunca fui à Somália, ainda há ataques bombistas»

Em Inglaterra, as oportunidades resumiram-se a passagens por pequenos clubes (Stockport, Glossop North End e Curzon Ashton) e a empregos precários em duas fábricas. Tudo mudou em 2016 quando um amigo, proprietário de uma escola de condução, o convidou a agarrar o volante. 

«O horário é flexível e permite-me olhar para o futebol mais a sério. E depois há situações engraçadas. Um dos meus alunos soube que eu jogava pela seleção da Somália e disse-me que era amigo do capitão do Zimbabwe, o Alec Mudimu, que também vive em Manchester.»

Apesar da grande exibição de Mohamud Ali, a Somália só venceu por 1-0 e na segunda-mão perdeu por 3-1 no Zimbabwe. O sonho do Mundial teve de ser adiado, bem como o de visitar pela primeira vez o país onde os seus pais nasceram.

«Nunca lá fui, mas quero ir. Alguns familiares dizem que a situação está melhor, mas lemos notícias sobre ataques suicidas e ainda alguns conflitos. Não é a altura certa para lá ir. Na primeira vez que fui a África fiquei chocado. Jogámos na capital da Etiópia, Adis Abeba, e só via pedintes e burros à solta nas ruas. Amo o país da minha família, mas estou mais seguro em Manchester.»

A Somália está, entretanto, a construir um estádio para 65 mil espetadores em Mogadíscio. Estará pronto até ao final de 2020.