A família de Mohamed Saleh está em Gaza e as notícias que chegam são poucas. Passa dias sem conseguir contactá-los enquanto está no Qatar, onde a Palestina procura nesta terça-feira a primeira vitória de sempre na Taça da Ásia e sonha ainda com um apuramento inédito.

«Vivem numa tenda num terreno baldio. Que Deus os ajude», diz o defesa numa conversa com a France Press, que conta como Saleh soube pouco antes do início da Taça da Ásia que um tio, uma tia e os seus filhos tinham sido mortos no conflito entre Israel e o Hamas desencadeado a 7 de outubro e que, na estimativa das autoridades palestinianas, já causou mais de 25 mil mortes.

Saleh é um dos dois jogadores da seleção natural de Gaza. O outro é o avançado Mahmoud Wadi e ambos jogam no Egito. Não seria possível terem-se juntado à equipa se ainda estivessem no território, de onde é impossível sair.

«Todos os jogadores se agarram aos telefones sempre que podem»

Para eles, como para os restantes companheiros, têm sido tempos duros, de angústia. «Os que são de Gaza estão preocupados com a segurança dos familiares e amigos, mas todos os jogadores se agarram aos telefones sempre que podem», contou o selecionador da Palestina, o tunisino Makram Daboub, ao Observer.

A preparação fez-se longe da Palestina, sempre em trânsito. Quando aconteceu o ataque do Hamas e Israel iniciou a ofensiva que ainda decorre, a seleção estava num torneio na Malásia. Desde então, não voltou à Palestina. Em novembro teve dois jogos de qualificação para o Mundial 2026 e ambos se jogaram em campo neutro – a visita ao vizinho Líbano nos Emiratos Árabes Unidos e o jogo em «casa» com a Austrália foi transferido para o Kuwait.

Na preparação para a Taça da Ásia, a equipa esteve primeiro na Jordânia, antes de um estágio na Argélia e outro na Arábia Saudita, com os anfitriões a financiarem as despesas. Já no Qatar, juntaram-se os últimos jogadores, entre eles o avançado Oday Dabbagh, ex-jogador do Arouca, atualmente nos belgas do Charleroi.

Mortes e horror também atingiram o desporto

Em Gaza, o horror chegou também ao desporto. O futebol parou logo em outubro - os territórios palestinianos têm dois campeonatos, um em Gaza e outro na Cisjordândia, e ambos foram suspensos desde o intensificar do conflito. E poucos dias antes do início da Taça da Ásia a Federação da Palestina anunciou a morte de Hani Al-Masdar, antigo jogador que era o treinador da seleção olímpica, atingido pelos estilhaços de um míssil.

Al-Masdar uma figura popular na Palestina e próximo de vários jogadores da seleção. «O Saleh, o Wadi, os jogadores mais jovens da seleção olímpica conheciam-no muito bem. Jogavam juntos antes da guerra. Ninguém devia estar nesta situação. Ninguém no mundo», diz à Al-Jazeera o guarda-redes Rami Hamadi, ele próprio um símbolo da complexidade do conflito que se arrasta há décadas. Nascido em Israel, jogava na Liga israelita quando se estreou na seleção da Palestina. Agora, representa o Jabal Al-Mukaber, clube da Cisjordânia, e não sabe quando ou se voltará a jogar.

A Federação palestiniana estima que desde 7 de outubro já morreram 88 desportistas, entre eles 67 futebolistas, falando ainda em 15 instalações desportivas alvo de ataques. O estádio de Yarmouk, em Gaza, foi transformado em campo de detenção.

Selecionador nunca teve autorização para visitar Gaza

As dificuldades não são novidade para o futebol na Palestina, cuja federação foi oficialmente reconhecida pela FIFA em 1998, depois de um longo processo. O selecionador Makram Daboub, conta o Guardian, nunca teve autorização de Israel para visitar Gaza e ver jogos ou observar jogadores.

No meio da tensão de décadas com Israel, são recorrentes as denúncias palestinianas de dificuldades em conseguir autorização para que os jogadores deixem os territórios. Na qualificação para o Mundial 2010, a Palestina perdeu mesmo um jogo com Singapura por falta de comparência, embora tenha argumentado que não conseguiu fazer a viagem. A seleção, que ocupa atualmente o 99º lugar do ranking da FIFA, não joga em território palestiniano desde 2019.

Solidariedade no Qatar

«Jogar na seleção da Palestina significa que há muitas dificuldades. Dificuldades em concentrarmo-nos e em treinar, dificuldade em viajar», resume ao canal CGTN o veterano Tamer Seyam. O médio, que se estreou na seleção há uma década e joga atualmente na Tailândia, foi o autor do golo na derrota frente ao Irão (4-1), na estreia na Taça da Ásia.

No Qatar, na sua terceira participação na Taça da Ásia, a Palestina tem sido recebida com manifestações de apoio, da organização e dos adeptos nas bancadas. Na cerimónia de abertura, no Estádio Lusail, o capitão da seleção anfitriã cedeu ao capitão palestiniano a tarefa de fazer o tradicional juramento dos atletas. Musab Al-Battat subiu ao palanque usando o keffiyeh, o lenço tradicional, e o hino palestiniano foi tocado no estádio.

O jogo de estreia com o Irão foi particularmente emotivo, desde logo no minuto de silêncio antes do pontapé de saída.

As contas para um apuramento inédito

Em campo, depois da derrota com o Irão, a Palestina empatou a um golo com os Emiratos Árabes Unidos de Paulo Bento. Chega ao terceiro e último jogo, frente a Hong Kong, ainda com hipóteses de se apurar para os oitavos de final. Para isso, precisa antes de mais de conseguir a sua primeira vitória de sempre na competição. O segundo lugar, que garante o apuramento direto, ainda está ao alcance, embora dependesse de uma derrota dos EAU frente ao já apurado Irão e de uma combinação de resultados que desse à Palestina vantagem na diferença de golos. Mas há ainda outra via, sendo um dos quatro melhores terceiros classificados.

«O jogo com Hong Kong não será fácil, mas estamos bem preparados e queremos conseguir um feito histórico para a Palestina», disse Tamer Seyam na antevisão do jogo. Histórico do ponto de vista desportivo, mas não só.

No atual contexto, a seleção quer passar uma mensagem de esperança. Para as famílias dos jogadores, como diz Saleh: «Jogamos por eles, por Gaza, pela nossa causa.» E para todos os palestinianos, defende o selecionador. «Apesar da dor, queremos dar-lhes esperança», disse Daboub ao Observer: «Sucesso no torneio significaria muito para nós e para o nosso povo. Queremos passar ao mundo a mensagem de que na Palestina há pessoas que merecem uma vida melhor, merecem a paz e a liberdade.»