Manuel Fernandes fez a última época no Sepahan, do Irão, terminou contrato e não quer pendurar já as botas. O internacional português confessa nesta entrevista ao Maisfutebol que pretende jogar mais um ano, mais perto de casa, para sair no momento certo e determinado por ele.
«Gostava que não fosse o futebol a retirar-se de mim, mas eu a retirar-me do futebol», justifica, adiantando que quer um clube que respeite a forma como ele pensa o futebol.
Nos sonhos imagina-se a acabar a carreira no Benfica, mas admite que neste momento, aos 37 anos, isso não é viável.
Até pela forma como saiu do clube: sobre isso, aliás, diz que não se arrepende de nada, mas que o processo não foi o mais correto para nenhuma das partes. Pelo caminho, fala do homem que é hoje e do que quer ser no futuro.
Passou o último ano mais longe, no Irão, parece que recentemente anda mais escondido. Que Manuel Fernandes é este que hoje fala comigo?
É um Manuel Fernandes com bastante experiência, não só a nível futebolístico, mas também com mais experiência de vida. A maior parte da minha carreira foi feita no estrangeiro, tive a possibilidade de jogar em vários países, culturais diferentes, e se tivesse de me avaliar nesta fase da carreira destacaria a experiência. Acho que é a parte em que mais sinto a diferença.
É uma pessoa culturalmente mais rica?
Se calhar não usava a palavra rica, mas foram todas experiências, umas melhores do que outras, naturalmente, mas todas elas experiências importantes para me entender a mim próprio, para entender o tipo de pessoa que sou e como devo lidar com certas situações.
E o que é que concluiu depois de se conhecer melhor?
Que de facto sou uma pessoa resiliente e mentalmente muito forte. Felizmente tive mais situações boas do que menos boas, mas as situações menos boas obrigaram-me a ter uma enorme força mental. Na altura quando elas começaram a acontecer não sabia se tinha essa força mental e no final consegui perceber que tinha, consegui ultrapassá-las e seguir em frente.
Que experiências menos boas foram essas que o tornaram mais forte?
A que me vem primeiro à mente, e se calhar a mais importante, foi no meu segundo ano de Lokomotiv, quando tive divergências com a na altura presidente do clube. Por causa disso só me era permitido jogar muito pouco. Foi no ano em que apanhámos o Sporting, de Jorge Jesus, na Liga Europa, e eu só jogava nas competições europeias. No campeonato não jogava. Acabei por jogar pouco, no início da terceira temporada fui posto de parte, estive dois meses afastado, mas a verdade é que um ano e meio depois tinha recuperado o lugar, tinha sido campeão russo, tinha ganhado a Taça e ainda fui à Seleção Nacional.
Ou seja, num ano e meio conseguiu mudar tudo radicalmente.
Sim, e isso só poderia ser feito se conseguisse manter-me forte mentalmente e não me permitisse deixar cair os braços. O que se estava a passar era algo que eu não podia controlar, a única coisa que podia controlar era o meu treino e a capacidade de me manter em forma. Foi isso que fiz, porque não queria cometer o erro de estar a queixar-me e depois não conseguir cumprir quando me fosse dada, e se me fosse dada, uma oportunidade.
Entretanto terminou o contrato com o Sepahan, tem expetativas de continuar?
Não, não tenho intenções de continuar. Não vou dizer que a experiência foi má, porque não foi, apesar de ter tido algumas lesões, que era algo a que não estava habituado, e de não termos conseguido chegar ao título de campeões, apesar de termos lutado até ao fim. Mas agora pretendo algo mais perto de casa e um campeonato que seja um bocadinho mais profissional.
E o que é que gostava que lhe aparecesse? Alguma coisa em Portugal?
Eu tenho 37 anos e, sendo realista, primeira divisão em Portugal é difícil. Para jogar em Portugal teria de ser algo como uma segunda divisão. Não é que tenha algum problema com isso, mas acima de tudo ia depender da equipa em si e da forma de jogar.
Está disponível para tudo, portanto.
Estou aberto. Esta é provavelmente a fase em que estou mais aberto a tudo.
«O Benfica é o clube da minha vida, deu-me muitas para bases para ser a pessoa que sou»
O final da carreira já lhe passou pela cabeça?
Está muito próximo, está realmente muito próximo. Eu acredito que, se não encontrar nada que diga que vale a pena, posso ter de ponderar deixar de jogar. Mas o intuito claramente é jogar mais uma temporada e terminar após mais uma época a jogar, deixando de jogar no ano que vem e sempre dentro dos meus tempos. Gostava que não fosse o futebol a retirar-se de mim, mas eu a retirar-me do futebol. Seria esta a ideia.
E quando fecha os olhos, onde é que sonha fazer este último ano?
Essa é uma pergunta difícil. O ideal, honestamente, seria terminar no Benfica, mas é algo que por várias razões nunca seria viável, e muito menos nesta altura. Por isso não lhe consigo dar uma resposta concreta. Eu sei que Portugal é um país vendedor e normalmente as contratações são feitas com uma perspetiva de fazer negócio. Eu tenho 37 anos e essa perspetiva não existe, mas posso obviamente dar outras coisas: experiência, por exemplo. Posso ser um mentor para os mais jovens. Como disse antes, estou aberto a tudo e vai depender de vários fatores. O principal fator seria o futebol que a equipa joga. Eu tenho uma maneira de entender e ver o futebol, e acho que é importante por isso a equipa de jogar de uma determinada forma.
Que determinada forma é essa?
Felizmente joguei sempre em equipas que lutavam para ganhar as competições internas, e mesmo para competir a um bom nível internacionalmente, à exceção do Kayserispor, que era uma equipa que defendia com um bloco muito baixo e passava muitos jogos a defender. Era algo a que eu não estava habituado, que não se enquadrava na minha forma de entender o jogo e por isso senti mais dificuldades. Quando falo de forma de jogar, é a isso que me refiro.
Qual é o clube da sua vida?
É o Benfica. Não só porque fui para lá muito novo, mas porque foi o clube que me ajudou a fazer a carreira que fiz. Quando digo ajudou refiro-me a coisas como pagar o passe, ter a preocupação que tivesse boas notas na escola, ensinar-me que se não tivesse aproveitamento escolar não ia ser convocado, por exemplo. Coisas assim, em que havia uma preocupação em ajudar-me a crescer e criar uma base para o resto da minha carreira de jogador.
Ajudou-o, portanto, não só a ser jogador, mas também a ser a pessoa que é?
Sim, deu-me muitas bases. Também tive muita sorte em apanhar muitos antigos jogadores do Benfica como treinadores, que me passaram os valores do Benfica e da amizade. Dá-me prazer hoje ir ao Estádio da Luz e poder conversar com esses antigos treinadores, agora num registo diferente, mas sabendo o que me ajudaram noutros tempos.
Vai muitas vezes ao Estádio da Luz?
Este ano fui imensas vezes. Estive muito tempo sem ir, mas este ano, sempre que estava em Portugal e havia algum jogo em casa, fui sempre ao estádio. No início não ia porque também não saí a bem do Benfica, devia ter saído de uma maneira muito melhor para as ambas as partes, mas a coisa não correu da melhor forma. Por isso sempre senti que não era o momento certo sequer para ir ver um jogo e então estive muito tempo afastado. E quando digo muito tempo refiro-me a mais uma década, provavelmente.
E agora, quando regressa ao Estádio da Luz, como é que é recebido pelos benfiquistas?
Bem. A conversa é sempre a mesma, que não devia ter saído tão cedo, sempre nesse registo, mas de uma forma geral não me recordo de nenhum incidente negativo, sinceramente. Se calhar houve uma ou outra pessoa que gostava de me dizer alguma coisa, mas não disse. Esta temporada fui umas quatro ou cinco vezes e a abordagem é sempre a mesma, o que de certa forma é lisonjeador, porque joguei três anos na equipa principal e já foi há 20 anos. Sinal de que alguma coisa fiz bem.
«Estive dois meses no Sporting, mas na altura havia os Bilhetes de Identidade azuis»
Olhando para a forma como saiu, e a esta distância, arrepende-se?
Não. Não vejo como um arrependimento. Mas claramente, e olhando para trás, devia ter feito as coisas de uma forma diferente. Isso é inegável. Mas eu acredito que as experiências, boas ou más, acabam por nos moldar e tornar naquilo que somos hoje. Se calhar, se não tivesse saído, era outro tipo de pessoa. Não diria outro jogador, mas outra pessoa, com uma visão diferente das coisas. Não teria tido de oportunidade de jogar tão cedo do estrangeiro, de sair da minha zona de conforto tão cedo. Acredito que isso também me ajudou. Ou seja, foi um mal que veio por bem: o mal foi sair do Benfica tão cedo, mas o bem foi obrigar-me a aprender a lidar com estar fora da minha zona de conforto.
Curiosamente, uma coisa que pouca gente sabe, é que antes do Benfica ainda passou pelo Sporting, não foi?
Sim, eu era muito novo. Estava no Futebol Benfica, o famoso Fofó, fui treinar ao Sporting durante dois meses, só que na altura havia a questão dos Bilhete de Identidade amarelos e azuis.
Bilhetes de Identidade azuis?
Sim. A minha mãe é cabo-verdiana e em 1986 tinha saído uma lei que filhos de estrangeiros tinham a nacionalidade dos pais. Por isso, e mesmo tendo nascido em Portugal, eu não tinha nacionalidade portuguesa, tinha então o tal Bilhete de Identidade azul. Na altura nas camadas jovens os clubes podiam ter dois estrangeiros, e só um podia jogar. O Sporting já tinha um estrangeiro, que era um ano mais velho do que eu, portanto ia jogar muito pouco e decidi sair. Foi nessa altura que me levaram ao Benfica e começa aí a minha história.
Que se tornou uma história brilhante e, por exemplo, é impossível esquecer a influência que teve no título de 2005.
Com o Trapattoni, sim. Foi uma boa temporada. Não tínhamos o melhor plantel, que era o do FC Porto, não jogávamos o melhor futebol, porque esse era o do Sporting, do Peseiro, no entanto, com mérito e alguma sorte lá conseguimos ganhar o campeonato. Nem chegámos aos 70 pontos, este ano o Benfica ganhou com 87 e o FC Porto ficou em segundo com 85. Isso revela um bocado como aquele campeonato foi, mas não podemos tirar mérito àquela equipa: o Benfica estava a tentar reencontrar-se, não tinha campo para treinar, não tinha centro de estágios e treinávamos num sítio diferente todos os dias. Ainda apanhei um bocadinho do Seixal antes de vir embora e fico muito contente ao ver o que foi feito, porque o Benfica hoje tem uma estrutura muito boa. Tem a organização que uma equipa grande tem de ter sempre.
Entretanto foi a dois Europeus Sub-21, nos quais era uma das grandes estrelas da seleção. Porque demorou a ter a mesma influência na Seleção Nacional?
Eu sou chamado a primeira vez pelo Scolari, para um jogo com a Irlanda, no qual até acho que entro para o lugar do Ronaldo. Depois continuo a ser chamado com o Carlos Queiroz, ainda sou chamado no início do Paulo Bento, mas depois aconteceram uma ou outra situação que não me agradaram, achei que se era para não ter minutos não valia a pena ir e fiquei cinco anos sem ser convocado, até que chegou o Fernando Santos e aí deu-se o meu regresso.
Que balanço é que faz da carreira na Seleção Nacional?
Não posso dizer que seja um balanço positivo, porque eu fui chamado primeiro do que o Nani e o Moutinho, por exemplo, mas eles dois juntos têm duzentas e tal internacionalizações. São dos mais internacionais de sempre e com muito mérito. Eu tenho quinze e sei que podia ter feito muito mais, sem dúvida. Eu ainda sou o sub-21 mais internacional de sempre.
«No futebol diz-se muito que se gosta de frontalidade, mas na minha opinião isso é uma mentira»
E consegue perceber o que correu mal?
Foram várias coisas. Antes mais, a competência, porque quando comecei a ir à seleção havia Deco, Maniche, Costinha, Petit, Tiago, enfim, jogadores de muita qualidade. A irregularidade no Valência também não ajudou. Não jogava com regularidade e devia jogar, para poder competir com jogadores que jogavam todos os fins-de-semana nos seus clubes. E, por fim, o relacionamento com Paulo Bento provavelmente também fez com que tivesse passado muito tempo sem ser convocado.
Acha que a sua personalidade e não ser um falso modesto o pode ter prejudicado?
No meio do futebol diz-se muito que se gosta de frontalidade e tudo o mais, mas do meu ponto de vista isso é uma mentira. Isto não é para dar aval a certas situações, porque eu cometi erros ao pontapé, mas é muito mais fácil ser politicamente correto. Não tenho dúvidas que a minha personalidade ou carácter em determinadas situações me prejudicaram.
Para terminar, e sendo certo que ainda quer jogar mais um ano, mas que balanço faz da sua carreira?
Positivo.
Só?
Sim. Em primeiro, porque consegui desfrutar do que estava a fazer na maior parte dos clubes por onde passei e ainda me pagavam por isso. Não me posso queixar. Se acho que podia ter feito mais? Claramente. Acho que podia ter atingido outro nível, se calhar noutro tipo de clubes, mas no final do dia foram decisões. Sinto-me confortável com o que fiz, acredito que tomei as opções que achei que eram as melhores e não tenho nenhum tipo de arrependimento. É claro que acho que podia ter feito melhor, mas eu acho isso sempre: se for jogar ao berlinde e perder, vou pensar que podia ter feito melhor. De uma forma geral, acho que foi uma carreira positiva e não há muito de que me possa queixar.
Já pensou no que quer fazer a seguir?
Voltar a estudar. A primeira coisa que quero fazer quando parar de jogar é voltar a estudar e depois disso aproveitar o tempo com a família. Estive tanto tempo fora e a família sempre esteve aqui em Portugal. Quero aproveitar o tempo. Depois vou vendo o que quero aprender mais, mas o primeiro objetivo é voltar a estudar.
Mas nada a ver com o futebol...
Não, não, não. Não faço tensões, pelo menos nesta fase, de ficar ligado ao futebol. Se calhar no futuro até posso mudar de opinião, mas nesta altura não está nos meus planos.
Então o que gostava de estudar?
Gestão empresarial.