A pequena cidade de Bodo, na costa do Mar da Noruega, anda numa azáfama. Há meses que deixou de ser apenas destino para aventureiros à procura da experiência de uma vida: testemunhar o espetáculo da aurora boreal. Perdida na linha a norte do Círculo Polar Ártico, a dezasseis horas de carro de Oslo, a localidade onde o céu fica verde tornou-se um fenómeno.

O destino começou a mudar quando no final da última época o humilde Bodo/Glimt se tornou campeão. O que era impensável há meia dúzia de anos.

Para tornar esta história ainda mais épica, a equipa goleou (6-1) a poderosa Roma, de Mourinho, em jogo da Liga Conferência. Na capital italiana esteve quase a ganhar novamente, mas um golo ao minuto 84 fez com que se tivesse de contentar com o empate.

Bodo tornou-se título de notícia nos jornais de todo o mundo.

Os 52 mil habitantes encheram o peito de orgulho e a cidade de euforia. Na parte final da última época, numa altura em que a covid-19 limitava as bancadas a um máximo de 600 espectadores, houve quem tivesse alugado uma máquina de apanhar cerejas para se pendurar no cesto, esticar o braço mecânico e assistir aos jogos por cima da bancada.

Uma loucura que custou uma multa ao clube, que foi naturalmente paga com gosto. Aquela onda de entusiasmo era imparável: e isso, sim, era verdadeiramente importante.

Outra loucura, esta já com mais de quatro décadas, passa pelo hábito de se levar escovas de dentes gigantes, todas amarelas, para as bancadas. Uma tradição que começou na década de 70, quando um adepto tirou do bolso uma escova de dentes e a passou a um amigo, para que este tivesse uma batuta com que dirigir os restantes adeptos no apoio à equipa.

No jogo seguinte o próprio líder levou uma escova de dentes amarela para as bancadas e uns tempos depois a marca de produtos dentríficos Jordan ofereceu ela própria uma escova de dentes gigante. A moda pegou e ficou até hoje.

Houve um jogo em que os adeptos até levaram um salmão gigante para a margem do campo.

«Era um clube que andava entre a primeira e a segunda divisão. Em 2017 estava na segunda divisão e subiu, em 2018 andou ali a lutar para não descer, evitou a despromoção nas últimas jornadas e depois em 2019 foi direto para o segundo lugar. No ano a seguir foi campeão. Mas em 2019 já tinha sido a melhor equipa a jogar na Noruega», conta Vítor Gazimba.

Vítor Gazimba é um treinador português com largos anos de Noruega. Chegou ao país em 2014 e logo no primeiro ano treinou Martin Odegaard. Entretanto saiu para a Suécia, mas continuou a acompanhar a equipa, onde diz ter vários amigos: sobretudo na equipa técnica.

«Houve um aspeto fundamental que foi a remodelação do futebol jovem em 2017. A Noruega avançou para uma classificação das academias, em que é feita uma distribuição do dinheiro de acordo com a academia ter uma, duas, três, quatro ou cinco estrelas, e o Bodo/Glimt aproveitou esse boom para apostar na formação, que não era forte, e torná-la exemplar.»

Foi a Inglaterra, por exemplo, contratar Gregg Broughton, que era diretor da formação do Norwich, para desempenhar exatamente as mesmas funções no clube isolado no Ártico.

«Trouxe profissionais muito qualificados, apostou num bom recrutamento e hoje tem vários jogadores das camadas jovens na equipa principal. Na verdade, a maior parte da equipa é de jovens formados no clube ou contratados com idades ainda muito jovens.»

A filosofia do Bodo/Glimt tem esse aspeto como âncora, aliás: é importante que grande parte do plantel seja formada por jogadores locais ou do norte da Noruega. Frente à Roma, por exemplo, nove dos onze titulares eram noruegueses e sete tinham menos de 25 anos.

Pode parecer um capricho, mas não é. É um traço identitário de um clube que quer ser o orgulho de uma região desconsiderada e até discriminada. Orjan Berg, antigo jogador do clube, disse a uma reportagem da UEFA que há uns anos ninguém em Oslo arrendava casa a noruegueses do norte.

«Para o sul, nós éramos uns selvagens. Éramos todos agricultores ou pescadores. Não conseguíamos nem arrendar um apartamento na capital só por sermos do norte.»

Orjan Berg, de resto, é filho de Harald Berg, considerado a maior glória do clube, e é pai de Patrick Berg, uma das estrelas do atual plantel. Tal como ele, também os irmãos Runar e Arild jogaram no clube. São, portanto, cinco jogadores da mesma família e de três gerações diferentes no clube.

Este pormenor mostra como o Bodo/Glimt tem aquilo que falta a muitos clubes grandes: um forte sentido de comunidade. Algo que no futebol de alta competição já quase não existe.

Por isso é tão importante para eles ter jogadores do norte.

«O nosso objetivo é ter 40 por cento do plantel do norte da Noruega e 15 por cento dos minutos de jogo têm de ser de jogadores locais. Isto faz parte da nossa identidade. Os adeptos querem que os noruegueses do norte joguem na equipa», referiu Orjan Berg.

O Bodo/Glimt tem, de resto, um lema. A única ambição é não ter nenhuma ambição.

Em 2019 a equipa viajou para um estágio em Espanha, onde preparou a época. No momento de conversar sobre os objetivos, ficou estabelecido que não haveria objetivos.

«O treinador teve muitas conversas connosco e fez-nos sempre acreditar que não tínhamos objetivos. Não iríamos querer ganhar um certo número de jogos, ou marcar um determinado número de golos, ou acabar numa específica posição. Acabámos com tudo isso. Queríamos apenas concentrar-nos no desempenho», disse o capitão Ulrich Stalnes.

«As pessoas perguntam-nos constantemente qual é o segredo. Mas não há um segredo, não há uma coisa ou uma pessoa. Aconteceu tudo muito naturalmente. Não há um mapa.»

O português Vítor Gazimba entende perfeitamente o que disse Ulrich Stalnes.

«Esse é o carimbo do treinador Kjetil Knutsen. Em 2019 a equipa fez uma pré-época genial. A âncora foi sempre não lutar por este objetivo ou por aquele, mas criar uma filosofia clara de jogo. Mais do que este ou aquele objetivo, o Knutsen quer que eles joguem de uma determinada forma. Sempre assumiu que queria ser a equipa mais intensa da Noruega. É um clube que treina sempre muito forte e que depois é avassaladora na forma de jogar», conta.

«Aprecio muito o treinador e a equipa técnica, que conheço bem. Já estão a fazer um trabalho fenomenal há muito tempo. Têm uma forma de jogar bem definida e muito acutilante. Dá gosto ver jogar o Bodo/Glimt. Não tem nada a ver com o futebol nórdico: é uma equipa que pressiona alto e que defende bem. São muito compactos, muito agressivos e muito fortes tanto no contra-ataque como no ataque organizado, chegam sempre com cinco ou seis jogadores à área contrária.»

Patrick Berg, o tal médio que é filho de Orjan Berg e neto de Harald Berg, foi recentemente chamado à seleção norueguesa e, depois disso, contou uma história curiosa.

«Quando cheguei à concentração fui muito saudado pelo Haaland e pelo Odegaard. Disseram-me que não viamm muito a Liga Norueguesa, mas que assistiam a todos os nossos jogos.»

Vítor Gazimba concorda com Haaland e Odegard. Também ele, agora a treinar o Orebro, da Liga Sueca, tenta não perder um jogo do Bodo/Glimt. Essencialmente pela qualidade.

«Não tenho dúvida nenhuma que este é um dos melhores trabalhos no futebol europeu. O mais curioso é que o material humano do Bodo/Glimt estaria ao alcance de qualquer clube. O Sondre Fet, por exemplo, jogou contra mim quando representava o Aalesund, na II Liga. Era lateral esquerdo e nem era sempre titular. Jogava umas vezes, outras não. Agora é um número oito muito forte. A transformação dele foi absolutamente notável», conta.

«No final da última época a equipa perdeu os três jogadores do ataque. O Petter Hauge saiu para o Milan, o Kasper Junker saiu para o Urawa Reds, do Japão, e o Zinckernagel saiu para o Watford.  Esta época o ataque é formado pelo Amahl Pellegrino, que foi meu jogador no Stromsgodset B, o Erik Botheim, que foi formado no Rosenborg e andava emprestado a clubes da segunda metade da tabela, e o Ola Solbakken, que foi muito elogiado pelo Mourinho no final do jogo, e que também foi formado no Rosenborg e estava em clubes da segunda metade da tabela», acrescenta.

«Depois juntou estes jogadores a um grupo de jovens formados no clube e construiu uma equipa que joga muito bem. Isto mostra a qualidade do trabalho do Bodo/Glimto.»

Ora um desses jovens, precisamente, é Patrick Berg, de 23 anos, ele que está na pole-position para ser o próximo a dar o salto. É nesta altura o jogador mais valorizado financeiramente.

Curiosamente, Patrick Berg estava há quatro anos em crise profunda, tinha poucos minutos de jogo e tinha estabelecido como prioridade abandonar o clube onde jogara toda a família.

«Eu não estava com a cabeça no sítio certo. Estava desapontado e cheio de raiva, culpava toda a gente pelo meu mau momento, menos a mim.»

O mesmo, de resto, se passava com o atual capitão, o médio Ulrich Stalnes.

«Eu estava cheio de dúvidas e medos. Estava a pensar seriamente em abandonar o futebol, porque já não conseguia divertir-me. Antes dos jogos, tinha náuseas e cólicas estomacais.»

Para combater a baixa autoestima dos jogadores, o clube tomou uma decisão fundamental nesta história: contratou um mental coach. Mas não foi um mental coach qualquer. Contratou Bjorn Mannsverk, um antigo piloto de guerra, com duas missões realizadas no Afeganistão e uma na Líbia. Bjorn Mannsverk nem sequer gostava de futebol, mas isso era um detalhe.

«Eu só impus duas regras. Tudo tinha que ser voluntário, ninguém ia forçar os jogadores a falar comigo. E eu não seria um agente do clube, não iria dizer aos jogadores que eles deveriam ficar mais felizes ou que deveriam trabalhar mais.»

Desde então os jogadores têm sessões individuais e em grupo com os jogadores. Quando a equipa sofre um golo ou tem um mau momento numa partida, é norma os jogadores irem falar com ele e trabalharem sobre esse erro. Para além disso os jogadores fazem meditação e ioga antes dos treinos.

Foi Mannsverk quem incutiu a ideia de se focarem na performance e esquecer os resultados.

«Focarmo-nos em resultados gera muito stress. Focarmo-nos no desempenho é um processo de facto muito criativo», defende.

Desde então tudo mudou. A equipa tornou-se um grupo de amigos, que passa horas no banho turco e que gosta de partilhar banhos no mar frio da noruega. Certo é que juntando todos estes ingredientes o Bodo/Glimt tornou-se um caso de sucesso, que depois da vitória sobre o Molde há uma semana ficou a um passo de revalidar o título de campeão.

O que lança a dúvida: quando um dia o treinador Kjetil Knutsen e o diretor desportivo Aasmund Bjorkan deixarem o clube, o Bodo/Glimt poderá continuar a ter sucesso?

«É impossível saber. O Knutsen e o Bjorkan são peças-chave no sucesso e um dia seguramente vão sair. Sempre que um clube grande está em crise, eles são falados para assumir um lugar. Mas a verdade também é que Bodo/Glimt está a fazer um grande trabalho de base. Convém não esquecer que só três países têm estado nos últimos anos em todos os Europeus de futebol jovem e a Noruega é um deles. Portugal é outro, o que é sintomático: a Noruega está forte no futebol jovem», diz Vítor Gazimba.

«Está a ser feito um grande trabalho de formação no país, depois de criar o sistema de classificação das academias, e o Bodo/Glimt é um dos clubes mais destacados.»

Se o futuro pertence a Deus, o presente pertence aos homens. O Bodo/Glimt está a ultrapassar todas as melhores perspetivas e esta quinta-feira esteve perto de ganhar novamente a Mourinho.

Os selvagens do norte continuam a surpreender.