Só de começar a escrever a expressão «sympathy for the devil» começo a abanar os ombros e a bater o pé, trauteando os acordes do célebre tema dos The Rolling Stones. Mas não vou escrever sobre música, apesar de estar a ouvi-la neste momento. Vamos falar da Bélgica, dos diabos vermelhos, que está a entusiasmar os entusiastas do bom futebol e que garantiu o apuramento para o Mundial do Brasil.

(Se o leitor quiser ouvir os Stones vá até ao fim do texto, clique em play e regresse aqui enquanto o tema toca em fundo)

Bem, em primeiro lugar falamos de uma equipa que conta com jogadores como Courtois, Vermaelen, Kompany, Defour, Dembele, Witsel ou Hazard. E que é treinada por Marc Wilmots. Líder incontestada do Grupo A da zona europeia, soma oito vitórias, um empate e zero derrotas, tendo apontado 17 golos e sofrido apenas três. É o melhor registo defensivo de todo o continente, só melhorado em número total pela Espanha (2), mas esta tem menos dois jogos.

Mas, afinal, porque é que esta geração está a ter tanto sucesso? «Por três razões fundamentais: o novo conceito de desenvolvimento do futebol jovem dinamizado pela federação belga desde o Euro 2000; a influência da visão holandesa e mais concretamente do Ajax, com vários jogadores a atuarem nas competições sub-17 naquele país (Vermaelen, Vertonghen, Dembélé, Chadli, Alderweireld e Mertens, para além do centro de formação francês (Hazard e Mirallas), antes de 2005; o facto de clubes de top belgas terem adotado a visão da federação desde 2006 e que é concretizado no Anderlecht (Kompany e Lukaku), Standard Liège (Fellaini e Witsel) e KRC Genk (Courtois, Benteke e Defour)», refere ao Maisfutebol Raf Willems, jornalista e autor do livro recentemente lançado na Bélgica sobre o sucesso dos futebolistas daquele país na Liga Inglesa ( «Sympathy for the Devils. Les Belges en Premier League»).

A necessidade de responder aos insucessos do passado recente levou toda a estrutura do futebol belga a repensar conceitos e definir estratégias. Depois de seis mundiais seguidos, a Bélgica esteve ausente da prova em 2006 e 2010. Aliás, desde 2002 que não é possível ver os diabos vermelhos na fase final de uma competição. Agora, este grupo faz sonhar um país e já são feitos paralelismos com a seleção que chegou às meias-finais do Mundial de 1986 (e que só foi eliminada pela Argentina de Maradona).

As comparações fazem-se apenas no terreno do sucesso e da quantidade de futebolistas talentosos, dado que no relvado o tipo de jogo é completamente diferente do praticado nas décadas de oitenta e noventa do século passado. «A Bélgica dessa altura jogava em contra-ataque, com jogadores poderosos e contenção defensiva. Os diabos vermelhos eram uma equipa inteligente e forte, mas o estilo era chato. A mudança veio com o dinheiro disponível para a organização do Euro 2000, quando o departamento juvenil da federação decidiu estudar o que de melhor era feito pelos vizinhos e procurou combinar os elementos do futebol holandês (passe ofensivo com extremos em 4x3x3) e francês (maior controlo tático e circulação a meio-campo em 4x5x1)», analisa o belga.

A intenção foi «colocar o cérebro nos músculos», privilegiando a bola. «Desenvolveram um sistema próprio que denominam como Global (holandês) - Analítico (Francês) e de regresso ao Global. Chamam-lhe GAG e é considerada a doutrina do século XXI. A ideia é colocar os jogadores a pensarem em soluções, numa combinação com o futebol de rua e os elementos fundamentais, que são o prazer, o desenvolvimento e a zona (em vez da marcação homem a homem)», acrescenta Willems, frisando que esta ideia é desenvolvida a partir das camadas mais jovens: «O jogador belga moderno também é um ser humano».

A componente do futebol de rua tem sido levada a sério e com efeitos concretos, com a descoberta de jogadores como Zakaria Bakkali, que joga atualmente no PSV Eindhoven e é filho de imigrantes de Marrocos, ou mesmo Januzaj, filho de refugiados do Kovoso e que jogou no Anderlecht antes de assinar pelo Manchester United, para além de Lamisha Musonda, filho do ex-internacional da Zâmbia Charly Musonda e que já está no Chelsea.

Sucesso no exterior

O modelo está a funcionar, ainda que os clubes locais nem sempre tenham a lucrar com todo este processo. O sucesso dos jogadores é encontrado no exterior e nas maiores ligas, nomeadamente na Premier League. Basta olhar para os exemplos concretos. Fellaini acabou de assinar pelo Manchester United, Kompany é um dos capitães do Manchester City, Vermaelen é uma referência no Arsenal, Hazard é o novo menino bonito de Mourinho no Chelsea (e ainda há De Bruyne), Dembélé, Vertonghen e Chadli são pilares no Tottenham de Villas Boas.

Para além disso há casos espalhados por toda a Europa, como Steven Defour no FC Porto ou Alex Witsel no Zenit S. Petesburgo (depois do Benfica). Courtois é o guarda-redes do momento com a excelente carreira no Atlético de Madrid e Van Buyten garante a experiência que arrecadou no Bayern de Munique.

«Tenho de ser honesto, acredito que eles têm a qualidade para serem a melhor geração de sempre, até considerando que a média de idades está nos 25 anos. Ou seja, o melhor ainda está para vir», exulta Raf Willems, com a certeza de ter estudado este fenómeno com total atenção nos últimos anos.

O seu livro, acabado de publicar em Bruxelas, conta as histórias dos diabos vermelhos que estão atualmente na Permier League. «Falei com os jogadores, os seus pais e treinadores e escrevi retratos pessoais. Permite ao leitor ter uma visão global da geração de ouro do futebol belga. Se concretizarem o apuramento, considero que trarão ao país pelo menos sete bons anos, até ao Europeu de 2020, que vai passar por Bruxelas», refere, concluindo num tom que reúne todo este esforço e que é absolutamente relevante para o país, inclusivamente em termos de coesão política e social:

«Esta geração une todos os tipos de belgas: francófonos, flamengos, imigrantes. Eles são os cidadãos modernos do século XXI».

E aqui está a música prometida dos Rolling Stones. Se quiser pode começar a cantar: «Please allow me to introduce myself…»