Passos lentos, mas decididos. As duas mãos ajeitam a bola e, antes que o corpo se distenda novamente, ela já não está lá. O adepto mais adepto abre a boca de espanto, esmaga o cachecol com as mãos e aponta, depois, sem réstia de educação, para o truque de ilusionismo. Aquela tacada de minigolfe com a perna direita vinha devolvida, feliz, logo depois. As simple as that. O guarda-redes desiste, baixa os braços, recusando o papel de bobo da corte porque pensa, erradamente, que o destino lhe trará outro mais digno. Nas bancadas, todos se colocam em bicos de pé sobre os blocos de partida. On your marks, get set... Silêncio, antes da explosão. Só aquele momento, sem algo mais agarrado, era história.

O zapping faz-me parar na VH1, no último minuto de uma das canções mais incongruentes de sempre. Depois de plásticas em série, uma das estrelas pop mais cintilantes daquela era tenta mostrar-me que doesn`t matter if you¿re black or white. Enquanto tento convencer o meu pé direito de que não é música que mereça tal entusiasmo, transporto para aquele rectângulo de cores quentes caras que conheço. Vamos pensar jogo a... - o mesmo tique de encolher os ombros e nova face de figurante - jogo. No futebol tudo...- o olhar compenetrado, primeiro para o lado, depois em frente - é possível. É preciso levantar a cabeça. Chegam os últimos acordes.

Descubro-me a pedir à memória que me traga dos arquivos algo que tenha sido inventado nos últimos anos num campo de futebol: a bola desenha um «z» sobre o pé direito de Ronaldinho; Cristiano ou Robinho juntam partes de truques como peças de puzzle, à descoberta de nova patente. O «esquizofrénico foragido» Kerlon arma-se em foca amestrada e passa os adversários pelo sítio mais inimaginável. Mais, mais. O fim da bobine queima-se a preto e branco na tela. Não passo daí. Parece que o jogo chegou ao fim da história, tudo ou quase tudo foi inventado.

Se os jogadores deixaram a alma em campo e chegaram ocos aos microfones, não a recuperaram no regresso. Estão programados para desempenhar funções, inibidos de copiar o truque de ballet de Ardiles, o pontapé de escorpião de Higuita ou os saltos naïf de Blanco. Ou sequer de fazer tábua rasa do passado e reescreverem a história. Só o copycat Messi tem direito a decalcar a assinatura de Maradona. Em frente ao microfone, o mesmo discurso divide-se em duas alíneas: a) em caso de vitória ou b) depois de uma derrota. O resto propaga-se como vírus pelo planeta. Os atletas lêem a cartilha, uma tabuada dos dois ou dos três, decoram-na e repetem-na. Em nome de algo abstracto que se unificou como o bem-estar de um clube. Todos, mesmo os que hoje têm um talento que lhes permite tudo, são incapazes de ter pensamento próprio.

O DVD e o Youtube devolvem-nos o que perdemos com o tempo. Como um filme que se descobre de novo. Às vezes, um enredo inteiro no preciso momento em que pestanejámos. Maradona e Cruijff, entre outros, activos nos ideais, defendendo-os. Não precisam de ter razão, apenas de acreditar que a têm. O futebol aprendeu com eles. Eles acrescentaram algo ao jogo, dentro e fora de campo.

A bola vem devolvida de Jesper Olsen, e já era o penalty mais incrível da história, com Otto Versfeld, o guarda-redes, parado a meio, impotente. Aquele Ajax-Helmond Sport de Dezembro de 1982 estava a ser gravado para sempre. E a culpa não era do resultado, habitual por aquelas bandas, um 5-0 esmagador. O responsável era aquele momento, inventado em mesa de laboratório, que Cruijjf jamais repetiria. Houve quem aproveitasse a prescrição dos direitos de autor para reconstruir a cena, noutro estádio, noutro tempo, muitas vezes sem sucesso. O 14 holandês sabia, como sempre soube, que um teste de QI não se repete. E é intransmissível!

«Era capaz de viver na Bombonera» é um espaço de opinião da autoria de Luís Mateus, editor do Maisfutebol, que escreverá aqui às terças e sextas-feiras