Vamos a evidências: Donald Trump é um imbecil, mas um imbecil com dinheiro e poder, o que o torna perigoso.

Nada de surpreendente. A tal ponto que a recente proposta de vedar a muçulmanos a entrada nos Estados Unidos é encarada não com estupefação, como aconteceria com qualquer candidato à presidência da maior potência do planeta, mas apenas como mais um episódio de uma campanha em que, em troca de mediatismo, se sucedem dislates também sobre hispânicos ou a condição das mulheres.

Quem melhor respondeu ao mais mediático candidato nas primárias do Partido Republicano foi Muhammad Ali.

«Sou muçulmano e não há nada de muçulmano em matar gente inocente em Paris, San Bernardino (local do mais recente tiroteio em massa nos EUA) ou noutro lugar do mundo. Os verdadeiros muçulmanos sabem que a violência gratuita dos jihadistas vai contra os princípios da religião», reagiu numa declaração escrita aquele que foi distinguido como “O Atleta do Século" XX.

Ali nasceu Cassius Clay, tal como Kareem Abdul Jabbar era Lewis Alcindor antes de se tornar no melhor marcador da história da NBA, com 38 387 pontos – duas das maiores referências do desporto mundial converteram-se ao Islão quando entraram na idade adulta.

1964 começou com o jovem Clay a sagrar-se pela primeira vez campeão mundial de pesos-pesados ao derrotar Sonny Liston – «flutuo como uma borboleta e pico como uma abelha», advertiu-o antes do combate do título [na foto] com a trash talk que viria a tornar-se habitual. O ano terminou com Clay a juntar-se à Nação Islâmica, organização muçulmana fundada nos EUA.

Trump e Ali nasceram na década de 1940. Quando os avós alemães de Trump chegaram a Nova Iorque, já os antepassados de Ali haviam suportado a escravatura sulista pré-Guerra Civil.

Apesar de pontos de partida tão distintos, estes dois filhos da grande América tiveram carreiras de sucesso – um nos negócios, outro no desporto.

A diferença entre ambos é que o ringue em que Ali ganhou reconhecimento mundial tem um código de conduta. Ao contrário do mundo dos negócios, ou das campanhas eleitorais, no boxe os golpes baixos não são permitidos pelas regras.

Ao longo dos anos, mesmo consumido pela doença de Parkinson, Ali pronunciou-se pela libertação de prisioneiros políticos e por causas humanitárias.

Em meados da década de 1970, ele, “The Greatest”, levou “O Combate do Século” para o Zaire, assumiu-se como representante do pan-africanismo contra George Foreman, também afro-americano mas tido como alienado de causas sociais, e com 80 mil pessoas a gritarem o seu nome recuperou o título mundial de pesos-pesados pela última vez.

Oito anos antes, coube-lhe um papel decisivo na contestação à Guerra do Vietname, quando recusou pegar em armas para combater; um ato de coragem que lhe custou o título mundial e uma condenação de cinco anos de prisão, anulada em 1971. «Nunca um vietcong me chamou de negro. Porque haveria de lutar contra ele?», justificou.

Trump, por sua vez, disse sofrer de esporões no calcanhar e apresentou um atestado médico para não cumprir serviço militar no Vietname.

Ao longo dos anos, Ali, praticante de um desporto violento e de uma religião dada a fundamentalismos, revelou-se um pacifista.

Já o businessman e «bom americano» Trump, defensor entre outras coisas dos interesses do poderoso lobby das armas, quantas guerras injustificadas compraria se algum dia chegasse a presidente da América?

Na luta pelo progresso enquanto sociedade os exemplos de ambos são reveladores: Trump num canto; Ali no oposto.

A Humanidade tem tudo a ganhar se neste seu derradeiro combate Ali usar o seu legado como usava punhos para flutuar como uma borboleta e picar como uma abelha… E com a força dos seus argumentos ajudar a derrotar por KO uma visão idiota sobre o mundo.
 
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«Geraldinos & Arquibaldos» é um espaço de crónica quinzenal da autoria do jornalista Sérgio Pires. O título é inspirado na designação dada pelo jornalista e escritor brasileiro Nelson Rodrigues, que distinguia os adeptos do Maracanã entre o povo da geral e a burguesia da arquibancada.