Miguel Poiares Maduro presidiu ao Comité de Governação e Controlo da FIFA, organismo criado pela gestão de Gianni Infantino como uma das medidas pela reforma e transparência de uma instituição assolada por escândalos e suspeitas de corrupção que chegaram ao topo, à presidência de Joseph Blatter. Foi afastado ao fim de oito meses, de surpresa, junto com os presidentes dos dois Comités de Ética. O antigo ministro no Governo de Pedro Passos Coelho esteve na TVI e falou com o Maisfutebol, numa conversa em que aborda as pressões e dificuldades que enfrentou e denuncia muitos dos problemas endémicos da FIFA. Pressões políticas, falta de transparência nas eleições, compra de votos e as formas rocambolescas como ela pode acontecer. Diz ainda que pretendia ir mais longe, e revela que pretende continuar a trabalhar sobre a governação do futebol, mas de fora. Porque, acredita, as reformas a sério na FIFA não se farão a partir de dentro.

Presidiu oito meses ao Comité de Governação da FIFA e foi surpreendido ao fim de oito meses com a não renovação do mandato. Começando pelo início, como é que surgiu o convite para esse cargo?

A pessoa que me contactou quando fui convidado foi o então diretor dos serviços jurídicos da UEFA. O meu nome foi sugerido pela UEFA, mas penso que com o apoio do presidente Infantino na altura.

O que é que lhe foi pedido, quais eram as vossas competências?

É um Comité novo e que tem competências potencialmente importantíssimas. Desde controlar a elegibilidade de qualquer pessoa para um cargo na FIFA nos Comités, no Conselho. Isso implica se há por exemplo conflitos de interesses, a integridade da pessoa, se cumpre com as regras da FIFA. Em segundo lugar o controlo e supervisão dos processos eleitorais ao nível das Confederações e também depois para a eleição do presidente da FIFA. Em terceiro lugar tudo o que tenha a ver com questões de boa governação, quer da FIFA quer do futebol. Incluindo também questões que de direitos humanos. Para dar um exemplo, nós propusemos ao Conselho e está neste momento para decisão, não sei se ele irá adotar, uma política para garantia dos direitos humanos no quadro da atuação da FIFA. Inclui matérias como a criação de uma entidade independente que no âmbito dos Comités Organizadores do Campeonato do Mundo garanta que nesse Mundial serão cumpridos os direitos humanos. Que por exemplo na construção dos estádios se respeitam os direitos.

Questões como as condições de trabalho na construção dos estádios no Qatar, ou dos direitos dos homossexuais na Rússia, estão previstas?

Essas questões estão previstas. Não apenas os direitos, mas mecanismos eficazes de garantia dos direitos. A obrigatoriedade de a FIFA assegurar que quando contrata com um organizador do Campeonato do Mundo esse organizador atua de forma conforme aos direitos humanos e que há uma entidade independente que controla.

A FIFA não é a polícia do mundo, não pode garantir os direitos humanos em estados que não têm conformidade, é um bocadinho como as Nações Unidas. Agora o que pode é no seu âmbito de atuação, ou seja, quando contrata com uma empresa, por exemplo, garantir que essa empresa se conforma com determinados standards de proteção dos direitos humanos. Quando atribui o Mundial a um Estado, tem de garantir que o Comité Organizador nesse Estado se compromete com o cumprimento dos direitos humanos em tudo o que tem a ver com a organização desse CM. Com a construção dos estádios, com a liberdade de expressão e não discriminação dos fãs, isso tudo eu acho que é obrigação que a FIFA tem nessa matéria.

As funções do Comité são consultivas ou executivas?

São de dois tipos. As funções em matéria de controlo e elegibilidade são claramente decisionárias. Nós determinávamos se as pessoas podiam ser eleitas ou não. As decisões em matéria eleitoral são parcialmente de decisão e parcialmente de aconselhamento. Depende do âmbito. As competências mais amplas, em matérias que têm a ver com direitos humanos, ou outra coisa que nós propusemos, o reforço da obrigação de declaração de interesses de todos os membros dos Comités da FIFA, para evitar e controlar os conflitos de interesses, tudo isso são matéria em que nós temos, ou tínhamos, poder de propor ao Conselho, mas não de decisão final.

Apesar da saída inesperada, que balanço faz?

A experiência foi muito interessante. Nós estávamos a fazer um trabalho muito interessante. Ao nível do controlo de elegibilidade tomámos decisões muito difíceis, que afastaram pessoas politicamente muito notórias.

Entre essas decisões está o impedimento da recandidatura do russo Vitaly Mutko a Conselho da FIFA?

Seguramente. Tenho consciência e tive-a por várias razões que a exclusão do vice primeiro-ministro da Rússia de um cargo na FIFA era politicamentemuito sensível. Mas enquanto comité independente nós não podíamos guiar a nossa atuação pelo que era politicamente mais ou menos oportuno.

Mutko foi afastado pela questão do conflito de interesses?

Havia duas questões no processo. Por um lado tinha sido ministro do Desporto na altura do esquema de doping institucionalizado que entretanto foi divulgado. E haveria a questão de saber, daquilo que era público, se ele teria sido cúmplice. Mas nós não chegámos a discutir essa questão. Porque decidimos uma questão prévia, a circunstância de ele exercer um cargo governativo. A FIFA tem uma regra que é o princípio de neutralidade face aos Governos. Que a levou já, por exemplo, a suspender várias federações por alegada interferência governamental. Mas por outro lado, historicamente, tinha esta tradição de ter ministros de Governos nacionais nos seus orgãos dirigentes. O que era uma contradição e para nós inaceitável. A regra diz que qualquer oficial da FIFA tem de permanecer neutral em relação aos governos. Como é que um ministro pode permanecer neutral em relação ao seu Governo? Por definição não pode. Para nós era uma violação clara dessa regra.

Já disse que foram sujeitos a várias pressões, este foi um dos caso?

Não vou falar em concreto sobre o processo deliberativo, entendo que estamos sujeitos a uma obrigação de reserva e confidencialidade quanto à forma como foi deliberado o processo, que só pode ser excecionada em casos que tenham a ver por exemplo com uma investigação no âmbito judicial ou ético. Mas tinha clara consciência das dificuldades políticas que aquele caso suscitava e do que isso poderia implicar até em termos das funções que eu desempenhava. Agora, eu tinha um mandato muito claro para exercer uma função independente e de cumprimento das regras e era isso que eu tinha de fazer.

A vossa intervenção nos processos eleitorais das confederações também encontrou resistências?

Essa era outra das matérias muito interessante, sobretudo para alguém como eu que trabalha em questões de governação como académico: o controlo das eleições ao nível das Confederações e depois das futuras eleições para presidente da FIFA, que também era este Comité que iria em princípio supervisionar. É uma questão de que não se fala, mas que está na base de muitos problemas. Aliás, basta ver que vários dos casos judiciais descobertos estão associados a mecanismos de compra de votos nessas eleições.

O que fazer em relação à compra de votos?

O controlo, saber se há compra de votos ou não, é matéria que cai dentro do Comité de Ética. O que é que nós podiamos fazer e já estávamos a fazer? A garantir por um lado a integridade do ato eleitoral, desde logo prevenindo mecanismos de controlo de voto. Controla-se o voto, por exemplo, fazendo com que as pessoas tirem fotografias na cabine de voto do voto que fizeram. Ou dando-lhes uma caneta com uma cor especial. Ou então fazendo uma cópia do boletim de voto, a pessoa deixa o voto e traz o boletim em branco para demonstrar que votou de acordo com aquilo que se tinha comprometido. Ora nós instituimos mecanismos que impediam tudo isso.  Por exemplo, tivemos um conflito muito grande em África quando implementámos essas regras, mas se calhar também não foi por acaso que ao fim de 28 anos, com a implementação, mudou o presidente da Confederação africana. A nossa atuação estava a funcionar a esse nível.

Deu na TVI outro exemplo de resistência à mudança, a questão da representatividade das mulheres nos órgãos dirigentes.

Tivemos outro tipo de conflitos em outras Confederações. Na Ásia, a confederação da Ásia e Arábia, a questão que aconteceu teve muito a ver com o princípio que a FIFA estabeleceu, também novo, de representatividade das mulheres nos seus orgãos e que estabelece que as confederações têm de eleger pelo menos uma mulher. Várias confederações pegaram nessa obrigação e criaram aquilo a que chamaram uma posição feminina. E todas as mulheres eram candidatas a essa posição. Transformaram o «pelo menos uma mulher» em «não mais que uma mulher». Transformaram uma norma que tinha por objetivo promover a integração das mulheres numa norma que a limitava. Ora nós escrevemos logo uma carta a alertar que isto era uma violação do princípio. Houve várias confederações que mudaram logo a regra, mas houve uma que resistiu muito e continuava aliás a resistir a essa alteração.

Que outras mudanças queriam introduzir?

Uma matéria que iamos tratar a seguir tinha a ver com o financiamento das campanhas eleitorais. O presidente da FIFA tem de fazer campanha em todas as federações, porque uma ilha com 50 mil pessoas tem um voto da mesma forma que Portugal ou o Brasil. Isto significa viajar por todo o mundo. Como é que se financia? Ninguém sabe. Nalguns casos são algumas confederações que pagam, noutros casos são pessoas que têm riqueza própria, mas tudo isto cria uma distorção enorme.

E não é transparente.

E não é minimamente transparente. E isto que existe para o presidente da FIFA existe também para os lugares de Conselho na FIFA. Tendo já regulado a matéria do ato eleitoral em si, agora estávamos a trabalhar na questão do financiamento e organização das campanhas eleitorais.

Como é que propunham que acontecesse?

Estávamos a começar a refletir. Uma das questões que tinhamos ponderado é se devia haver um limite para os gastos, mas seguramente teria de haver transparência quanto às despesas dos candidatos. Porque ainda agora, numa confederação, um candidato ao Conselho da FIFA tinha convidado os presidentes das federações no dia anterior todos para a sua federação, para uma festa enorme de dois dias, a pretexto de uma conferência. Depois voaram todos no seu jato privado para o local onde a votação tinha lugar. Este tipo de coisas suscita problemas muito sérios de integridade do processo eleitoral.  

E não queríamos centrar-nos só na governação da FIFA, porque o mandato do comité não é só esse. Estávamos a começar a preparar trabalho, consultando todos os agentes do sistema, sobre as próprias questões relativas à transparência, conflitos de interesses do próprio negócio do futebol. Aí já não ao funcionamento da FIFA, mas ao futebol em geral.

O vosso mandato abrangia questões como essa dos conflitos de interesses no negócio global do futebol?

A proteção dos direitos humanos, a questão das transferências de jogadores tem muito a ver com isso também. Os conflitos de interesses na propriedade de clubes. São tudo questões nas quais nos preparávamos para trabalhar também. Espero que ainda venha a ser feito esse trabalho.

É pena. Uma das pessoas que mais trabalhava neste comité, a quem eu tinha entregue a liderança da reformas eleitorais era o professor Joseph Weiler, também saiu, em protesto, portanto é um golpe grande. Espero que a FIFA, que o presidente Infantino, ainda consiga retomar a credibilidade do processo, mas a minha leitura diz-me que reformas profundas na FIFA só realmente através de mecanismos de pressão externa. Porque quem quer que esteja na sua liderança está dependente politicamente de uma grande maioria que não quer essas reformas. E essa é a dificuldade que só se ultrapassa através de mecanismos de pressão externa.

Como é que isso pode funcionar, que mecanismos de pressão externa?

Isso é uma coisa que eu vou agora trabalhar, mas eu acho que têm de ser entidades supra-nacionais, por exemplo como a União Europeia, que da mesma forma que a UEFA e a FIFA impõem o licenciamento dos clubes, imponham o licenciamento das confederações e das organizações internacionais de desporto. A nível doméstico, no Estado, tambem impomos. Talvez fosse adequado que organizações que tenham essa capacidade de influência só licenciem e permitam a operação dessas confederações de desporto, não apenas de futebol, se cumprirem uma série de requisitos que garantam esses mecanismos de escrutínio independente e de «checks and balances», de responsabilização e transparência.

Depois desta ligação ao futebol vai-se dedicar a isso, passou a ser um tema que lhe interessa?

É uma das coisas que me interessa seguramente, trabalhar nisso. No imediato não vou seguramente exercer nenhuma função no futebol. Surgiram notícias do interesse da UEFA por eu ir exercer funções semelhantes na UEFA, essa hipótese deixou-me naturalmente orgulhoso e honrado- Mas coloquei logo de lado, porque achei que a perceção que iria dar era que de alguma forma existiria um quid pro quo com as funções anteriores. Ao ir para aí, de alguma forma era uma troca que me faziam. Eu achei que isso era negativo, não corresponde à imagem que quero manter de mim próprio, mas também seria negativo para a UEFA. Se quer tentar que isso funcione, e vai ser difícil, sendo que de qualquer forma na UEFA é mais fácil do que a nível global, porque a cultura na Europa mesmo assim já é um bocadinho diferente, mas para isso poder funcionar na UEFA é importante que quem vier a exercer essas funções as inicie sem qualquer sombra. O meu envolvimento no futebol no imediato vai ser do ponto de vista externo.

Foram substituidos o presidente do Comité de Governação e os presidentes dos Comités de Ética. Fez um paralelismo curioso, dizendo que é o mesmo que um país substituir todos os órgãos independentes.

Isso diz muito sobre a falta de perceção do que é necessário para salvaguardar a credibilidade e independência destes processos por parte de todos os agentes da FIFA. Vamos imaginar que as razões que estiveram por trás da nossa saída eram razões da maior boa vontade, que não houve nenhuma tentativa de, digamos, não renovar ests diferentes presidentes como sanção pelo exercício independente que tinham feito das suas funções. Mesmo que fosse esse o caso, devia ter existido a perceção de que a mensagem sistémica que se passava era terrível para a independência de quem viesse a seguir desempenhar essas funções. Por esse paralelo que eu estava a fazer, porque é o mesmo que um Estado de um dia para o outro substituir todos os presidentes dos órgãos independentes: o presidente do Tribunal Constitucional, o presidente do Supremo Tribunal de Justiça, o Procurador-Geral, o Governador do banco central. Numa decisão deste género têm de existir razões muito ponderosas, extraordinárias mesmo. Não pode ser tomada com alguma ligeireza, digamos. Não ter existido sequer a perceção disso é o que demonstra o quão difícil, quão antagónica aos processos de escrutínio independente a cultura do futebol é. Quero no entanto dizer que há presidentes de federações que querem realmente reformas. Um deles é o presidente da Federação portuguesa, o Fernando Gomes. Mas infelizmente não são a maioria.

Não lhe foi comunicada a sua saída antecipadamente? Como é que soube que não seria reconduzido?

Eu devia ir para o Bahrain na quarta-feira de manhã e foi-me comunicado ao telefone na terça-feira ao final do dia. Portanto, eu disse que já não ia. No caso dos meus dois colegas presidentes dos Comités de Ética, foi quando lá chegaram. Aliás, um deles ficou a saber por mim, porque eu apanhei-o numa ligação. Ele disse: «Bem, agora vão-me dizer quando eu aterrar.»