Hoje, no Parque dos Príncipes, o ambiente é familiar. As manifestações das claques, extintas por ordem governamental, acabaram. É este ambiente, mais calmo, que o Benfica vai encontrar na próxima quarta-feira. Em Paris, diz-se que o clube perdeu identidade, a que não ajudou a entrada de um milionário do Qatar, para presidente. Dezenas de adeptos terão desertado, e o que antes era um inferno para os adversários é hoje um palco onde o futebol deve ser olhado e absorvido (interpretado?) como uma obra de arte. Uma Ópera desportiva, talvez. Os terríveis e radicais «Boulogne Boys» e mesmo os mais multiculturais, mas agressivos, «Supras Auteuil», já não moram ali. Mas foi preciso derramar sangue, primeiro. 

Os problemas de violência causados pelas claques marcaram a história do clube durante os anos 80. É nesta altura, e desde os finais da década anterior, que o hooliganismo está em plena ascensão. A tragédia de Heysel, em Bruxelas, aconteceria em 1985, precisamente o ano em que da bancada Boulogne nasceria a primeira claque ultra do PSG: os «Boulogne Boys». É no modelo inglês, que fere de morte o desporto na Bélgica, na final da Taça dos Clubes Campeões Europeus entre Liverpool e Juventus, que os jovens e agressivos adeptos franceses se inspiram.

A história não começa aqui. A «Kop of Boulogne» (KOB) surge em 1978 e agrupa jovens adeptos, aí reunidos por uma questão financeira. É na bancada Boulogne que os preços são mais baratos, graças a um bilhete especial, e ondem se reúnem os mais novos, mas também os mais irreverentes aficionados do PSG. Também é à sua frente, por tradição desde o primeiro jogo no Parque dos Príncipes, que os jogadores aquecem. Estes adeptos ganham peso no clube por serem os primeiros a acompanhar a equipa na sua condição de visitante. Recorde-se que o PSG nasceu apenas em 1970, da fusão do Paris Football Club e do Stade Saint-Germain.

Entre 1978 e 1985, a tribuna Boulogne manteve-se aberta à entrada de adeptos rivais, o que favorecia a eclosão de confrontos. A sua atitude hooligan nos jogos fora de casa ajudou a formar a imagem de claque dura e agressiva. No meio da claque, em 1982, surgem os primeiros skinheads. Em 1985, a bancada é fechada e outras zonas do estádio interditas à KOB, fixando-a de vez na tribuna Boulogne. A esta decisão não são alheios os incidentes de Heysel, que teve proporções mediáticas muito grandes sobretudo junto da comunidade francófona.

« Um retrato histórico da Kop of Boulogne» (artigo SoFoot)

A escalada da violência

Os «Boulogne Boys» beneficiam de algumas acções de alguns elementos do KOB, como a vandalização dos estádios do Auxerre e do Nice, que anularam as viagens de apoio à equipa fora de casa, absorvendo os seus membros mais descontentes. A sangria não terminaria aqui e outros grupos radicais, como os «Garroches» e os «Firebirds», apareceriam também na tribuna Boulogne, criando vários incidentes entre os grupos.

Com a chegada do Canal Plus à direção do PSG em 1991, o problema «Boulogne» já existia. A fim de retirar força ao KOB, a estação propõe aos ultras para se mudarem para a curva «Auteil», uma claque mais recente e de inspiração italiana e não britânica, e assim nasceram os «Supras», os «Lutece Falco» e os «Dragons», que mais tarde se tornariam os «Tigris Mystic». Os «Boulogne Boys» e os «Garroches» permaneceram ligados à bancada Boulogne. Se a decisão apaziguou essa tribuna, criou uma rivalidade sangrenta entre as duas bancadas.

Em 2001, já eliminado, o PSG recebeu o Galatasaray para a Liga dos Campeões, e os incidentes começaram ainda fora do estádio, propagando-se depois para a bancada, com os hooligans a romper as barreiras de proteção. Vários adeptos foram presos, outros proibidos de regressar ao estádio, o clube é obrigado a jogar dois jogos a 500 km de Paris. Na Intertoto de 2001, a sua casa é Toulouse.

Dois anos depois, os «Tigris Mystic» celebram dez anos de existência com várias animações e uma bandeira gigante, e na bancada KOP sente-se pela primeira vez uma hegemonia a ser posta em causa. Na deslocação seguinte a Toulouse, surge a resposta, com vários independentes da bancada Boulogne a descer da sua bancada e a surpreender os Tigris, mais abaixo. A vingança viria logo a seguir, no Stade de France, onde se disputava a final da Taça de 2003, com novos confrontos. Vários incidentes se seguiriam entre as duas facções na época seguinte.

A sua inspiração ultra-nacionalista vinha a lume assim que caminhava contra os membros pluriculturais da curva Auteil: «La France aux français! Paris Magik!»

No final de 2004, o PSG volta a ser castigado pelo arremesso de very lights e tochas num encontro com o Metz. A época 2005/06 trará novos confrontos entre as duas claques. Depois de um ataque dos «Tigris» a elementos Boulogne numa estação de serviço, a primeira claque é extinta, a 27 de julho de 2006. 

A morte no jogo com o Hapoel e a faixa para o Lens

É também em 2006 que acontece um dos incidentes mais marcantes provocados pelas claques do clube de Paris. Num jogo com o Hapoel para a Taça UEFA, os franceses perdem por 4-2 debaixo de um ambiente apocalíptico e com provocações de parte a parte. No final, um grupo de hooligans apoiantes do PSG isola um adepto judeu, Yaniv Hazout, com insultos e ameaças físicas. Um polícia francês, que acompanhava a equipa, tenta impedir o espancamento e dispara contra Julien Quemener, acertando-lhe mortalmente no coração. Denunciado pela arma e pelo disparo, o agente tem de fugir para um MacDonalds para evitar a multidão em fúria. O ministro do interior Nicolas Sarkozy anuncia a dissolução de grupos de adeptos «que mantém atitudes racistas e condutas violentas». O PSG terá de jogar novamente à porta fechada e perde o subsídio anual da Câmara de Paris. A notícia da morte do adepto corre mundo, gerando ondas de solidariedade em vários estádios de França.

Pierre-Louis Dupont, presidente dos «Boulogne Boys», deu em 2006 uma entrevista ao «L'Express» em que fala do incidente com Quemener: «Sim, conhecia-o. Era um membro do nosso grupo, sócio número 225, que assistia a jogos em casa, raramente no exterior. Não era um hooligan, nunca tivemos problemas com ele. Em toda esta história disse-se tudo, não importa o quê. Acabamos por esquecê-lo e quem lhe era próximo. Ou ignoramos qual foi o seu papel na história da morte do polícia.»

Entretanto, em 2007, um novo grupo de ultras é criado, com ligações aos «Tigris», chamado primeiro «Auteil Rouge» e, mais tarde, «Grinta Paris».

No dia 29 março de 2008, na final da Taça da Liga com o Lens, vários adeptos do PSG erguem uma faixa em que acusam os rivais de pedofilia ( mais aqui), incendiando mais uma onda de protestos. A 17 de abril, a ministra do interior Michèle Alliot-Marie anuncia a dissolução dos históricos «Boulogne Boys». O clube fica excluído dessa competição no ano seguinte, mas será reintegrado depois de ganhar o recurso.

O «Plan Securité»

Outro dos pontos mais críticos do hooliganismo no clube chega em 2010, com a morte de um adepto depois de confrontos entre elementos das várias claques, à margem de um PSG-Marselha. Nesse mesmo ano, já depois de os adeptos do clube terem ficado impedidos de viajar para acompanhar a equipa, o presidente Robin Leproux estabelece o «Plan Securité»(Plano Segurança), a fim de pacificar de vez as bancadas do Parque dos Príncipes. A ideia passava pela colocação aleatória dos membros das fações Auteil e Bologne nas bancadas do Parque dos Príncipes, acabando com os lugares cativos, e ainda pelo levantamento de grelhas de separação em vários locais das bancadas. Muitos membros de claques passam a boicotar os jogos.

O PSG-Montpellier de 15 de maio de 2010 marca o fim de uma época. Mil parisienses fazem uma marcha de protesto antes do jogo, e ao minuto 75 dezenas de tochas são disparadas da curva Auteil para o relvado. O ambiente é impressionante. Nas duas tribunas históricas, os adeptos recusam-se a abandonar o local. Só com muito esforço da polícia as duas áreas são evacuadas. O «Plan Securité» é anunciado oficialmente no verão desse mesmo ano. As claques reagem com o apelo ao boicote.

Em Abril de 2010, as claques parisienses «Commando Loubard», «Milice Paris», «Supras Auteuil 1991», «Paris 1970 la Grinta» e «Les Authentiks» são também extintas por decreto do governo francês.

França: sete grupos de adeptos dissolvidos por violência

A chegada de Al-Khelaifi

Depois de várias acções de protesto, chega o QSI de Nasser Al-Khelaifi, em 2011. Leproux é demitido das suas funções, mas o Plano Segurança mantém-se intacto, excepto no que diz respeito ao reaparecimento dos cativos, embora com posições aleatórias nas tribunas. Passa a ser possível também acompanhar a equipa nos jogos fora, com bilhetes comprados a título individual.

Há precisamente uma semana, surgiu a notícia de que a direcção de Al-Khelaifi tinha ido ainda mais longe na sua missão de serenar o Parque dos Príncipes. Para receber o estatuto de adepto oficial do clube, qualquer pessoa tem de assinar um papel em que se responsabiliza pelo seu comportamento nas bancadas. Os fãs têm de garantir que não se levantam do lugar de forma a obstruir o campo de visão dos outros espectadores, não fumam (nem sequer cigarros electrónicos) nem tiram fotos ou filmam partes do jogo. Tudo em nome da paz. Mas será duradoura?

A entrada do dinheiro do Qatar e a luta por títulos faz com que o boicote das claques possa parar a qualquer instante, e os hooligans regressem às tribunas. O «Le Monde» publicou um artigo no final de 2011 em que denunciava isso mesmo, perguntando-se « Onde param os ultras do PSG?» A não existência de cativos tem segurado a ameaça, para já, fora do estádio ou dentro de portas, mas retirando-lhes a força de grupo. 

PS. Este texto foi escrito com recurso a várias fontes, entre os quais o jornal português «Expresso», a Wikipedia francesa e outros artigos do «LExpress», «Le Monde» e «Le Parisien», entre outros, encontrados online.