O campo de futebol de Heligolândia simboliza as adversidade na vida da ilha. De um lado o oceano frio e selvagem, do outro o penhasco vigilante e vertiginoso.

Tudo tão belo e, ao mesmo tempo, perigoso.

A relva é artificial, dura. Adormece a areia soprada pelos ventos inclementes e apoia os ferros e redes de duas balizas desertas. A pequena bancada é de cimento, há uma pista de cinza vermelha para os 100 metros.

Um cenário agreste, sim, mas que faz inveja a qualquer outro nos dias negros de 2020 e 2021. Dias de pandemia e incerteza.

O arquipélago de Heligolândia é constituído por duas ilhas. Território alemão no Mar do Norte, a cerca de 50 quilómetros da costa, um paraíso que se julgava perdido. Mas não.

«Não tivemos nenhum caso positivo de covid-19 desde o início da pandemia, é verdade», diz-nos Stefan Pfeifer, dirigente do clube local, o VFL Fosite Helgoland. Apesar da surpresa do jornalista, a explicação para tamanho tesouro, perdido no meio do mar, é simples.

Via o Lost, a série de televisão? É um bocado assim. Ninguém sai, ninguém entra. É um privilégio viver aqui e poder jogar futebol à vontade. Ligamos a televisão, vemos as notícias e tudo nos parece ficcional. Tem sido duro, mesmo para a Alemanha.»
 

Heligolândia assinalada no mapa, a 50 quilómetros da costa alemã

Alemanha, sim. Faltava dizer que as duas ilhas no Mar do Norte são território alemão desde 1890. A riqueza histórica, aliás, contrasta com a pequenez deste pedaço de terra – uma volta à ilha maior tem 8,4 quilómetros.

Durante séculos foi um refúgio para piratas, em 1714 foi tomado pelo reino da Dinamarca e no século 19 passou para mãos britânicas, até à entrada no império germânico.

As fortalezas de Hitler e o British Bing Bang em 1947

O VFL Fosite existe desde 1893. Está inscrito na federação germânica, é uma instituição de utilidade pública, tem campo próprio e jogadores. O problema, completa Stefan Pfeifer, é arranjar adversários.

«Somos amadores. Não podemos fazer viagens de duas horas e meia de ferry para jogar no continente e os nossos adversários, também clubes pequenos, são incapazes de vir cá. Temos dado a volta a isto com alguma imaginação», explica o dirigente, homem de 37 anos, pai de dois filhos e apaixonado pelo Bayern Munique.

«Nasci em Friedrichstadt, uma pequena cidade no continente alemão. Vim para a ilha em 2001 pelo mesmo motivo de sempre: o amor», conta o dirigente que, ao mesmo tempo, é gestor de propriedades. «A nossa ilha vive sobretudo do turismo e do aproveitamento energético do vento. Eu arrendo e vendo casas a quem chega, mas com a pandemia o trabalho diminuiu e há tempo para outras coisas.»

Vista aérea do campo de futebol de Heligolândia

Paraíso quase perdido, 1500 habitantes, não há máscaras, não há medo. A diferença, a grande diferença, está no porto do mar. Os barcos deixaram de entrar e sair, por questões de segurança. Estes alemães ficaram isolados e, ao mesmo tempo, seguros.

E o futebol, onde entra em tudo isto? O desporto-rei tocou os mais remotos lugares do planeta e aqui não é diferente. À falta de jogos oficiais, o VFL Fosite sobrevive com o entusiasmo de torneios internos.

Um terço dos habitantes é sócio do clube. Queremos provar que a ilha não serve apenas para observar a fauna e a flora, as aves [430 espécies] e as baleias. Aqui também se joga futebol e já vi muita gente com um bom nível a sair de cá.»

O arquipélago de Heligolândia tem sobrevivido a tudo. Tornados (muito frequentes), tremores de terra, até à invasão nazi na II Guerra Mundial. As pestilentas tropas de Hitler ocuparam as duas ilhas e criaram duas fortificações aparentemente invencíveis. Acabaram desfeitas, como costuma ocorrer às forças do Mal.

Em 1947, dois anos após o final do conflito vencido pelos Aliados, tropas britânicas fizeram implodir as instalações nazis na Heligolândia. A operação ficou inscrita na História a letras garrafais: o British Bing Bang.

Pouco a pouco, a rudeza dos penhascos e da costa rochosa voltou a encher-se de gente. E a ser um importante destino de férias para os alemães. O visitante mais célebre passou a ser Uwe Seeler, vice-campeão do mundo pela Alemanha em 1966 e figura história do Hamburgo.

«Herr Seeler era um visitante regular, sim», confirma Pfeifer. «O jogo mais importante no palmarés do VFL Fosite foi realizado em 1970, quando o Uwe trouxe cá o Hamburgo. Eu ainda não era nascido, mas os mais velhos falam todos desse dia.»

A histórica imagem de Uwe Seeler a rematar no campo de Heligolândia 

É dirigente de uma equipa portuguesa? Temos um convite para si

Gestão de escassez. Poucos futebolistas, poucos treinos. À quarta-feira treinam os seniores - «homens e mulheres, até aos 55 anos, mas já tivemos mais velhos» -, à sexta-feira é a vez das duas equipas mais jovens: «uma de adolescentes, dos 14 aos 18, outra dos mais pequenos».

O balneário da escola alberga todos os praticantes, mesmo em tempos de pandemia, «porque a pandemia não chegou cá». O declínio das infraestruturas é evidente, principalmente na iluminação artificial. Para colocar tudo em ordem, Oke fala num «investimento de 20 mil euros», mas lamenta as opções da câmara local.

A pequena autarquia da pequena Heligolândia deu prioridade à renovação do sistema de esgotos, ao novo quartel dos bombeiros e às obras no porto marítimo. O campo de futebol do VFL continuará, assim, entregue à luta entre o oceano selvagem e o penhasco vertiginoso, entregue apenas à paixão dos futebolistas locais.

«Precisamos de adversários. Quando acabar a pandemia, gostaríamos muito de ter uma equipa portuguesa. Pode dar-lhes o contacto do VFL Fosite? Somos gente hospitaleira.»

Se é responsável por uma equipa de futebol portuguesa, profissional ou amadora, e quiser jogar no arquipélago de Heligolândia, basta enviar um email para pfeifer@helgoland.de. Viva a sua experiência Lost no Mar do Norte, a jogar à bola.

VÍDEO: um passeio por Heligolândia