Sonho americano, conto de fadas, uma história verídica ao nível de um argumento de Hollywood… Jorge Alves viveu coisa parecida com tudo isso, quando no último sábado, por um acaso do destino, deixou de ser o desconhecido roupeiro da equipa dos Carolina Hurricanes para cumprir o anseio de uma vida, estreando-se aos 37 anos como guarda-redes da National Hockey League (NHL), liga norte-americana e canadiana de hóquei sobre o gelo.

Os 7,6 segundos de fama do luso-americano aconteceram devido à lesão de última hora do guarda-redes suplente dos Hurricanes – Eddie Lack –, o que obrigou a equipa a encontrar uma solução de recurso.

Uma situação inusitada, como recorda ao MAISFUTEBOL o próprio Jorge Alves: «A equipa-satélite dos Hurricanes estava a jogar no Canadá, pelo que não havia forma de arranjar um guarda-redes suplente. Como eu tinha jogado nas ligas inferiores e treino com a equipa, sempre que é preciso dar um jeito, o Ron Francis, diretor-geral da equipa e uma das glórias da modalidade (está no Hall of Fame da NHL), ligou-me a dizer: “Precisamos de ti. Quero que vás para o banco no jogo desta noite.” Assinei um contrato de curta duração (rubricado no telemóvel do vice-presidente Mike Sundheim, porque o tempo urgia) e à noite lá estava eu no banco, ainda incrédulo com tudo aquilo. E na minha cabeça ecoava: “Isto está acontecer… Estou com equipamento dos Hurricanes vestido, ao lado destes profissionais todos num jogo da NHL...” Essa oportunidade compensava todos os anos em que tentei fazer carreira como hoquista nas minor leagues.»

Momento mágico: «Jorge, chegou a tua hora»

O mais incrível aconteceu nos segundos finais do jogo de Tampa, quando a equipa da casa, os Lightning, vencia por 3-1 e os Hurricanes já não tinham hipóteses de recuperação.

O momento mágico e inesquecível que se seguiu é recordado a viva voz e sem interrupções por Jorge Alves, alternando um português razoável com o inglês naturalmente mais fluente, intercalando o discurso com expressões dos States, sempre com a voz emocionada por poder transmitir para o país dos seus pais um sonho tornado realidade:

«Quando eu já pensava em encaminhar-me para os balneários e na experiência incrível que tinha vivido no banco da equipa, ouvi o treinador (Bill Peters) gritar “Jorge!”. Pensei que alguém precisava de assistência ou algo assim, mas de seguida ouvi: “Põe o capacete e vai lá para dentro. Chegou a tua hora” Para ser sincero, fiquei confuso, sem saber o que fazer. Até o árbitro teve de dizer-me ao ouvido qualquer coisa como: “Anda para a pista, depressa.” Jamais me esquecerei do que vivi a seguir. Olhei para o placard electrónico: «7,6 segundos.» Ouvi o meu nome nas colunas do pavilhão: «Alves!» Entrei. Fui para a baliza. Tive medo que naqueles 7,6 segundos algum adversário rematasse e fizesse golo. Tive medo de não estar à altura e estragar aquele momento pelo qual eu tinha esperado 14 anos. Os segundos passaram lentamente, o jogo acabou, eu sai da pista, tirei o capacete e a minha camisola com o meu nome e o jersey #40 e comecei a chorar. Apesar de todos me terem agradecido, sou eu que estou eternamente grato à equipa e sobretudo ao treinador por aquilo que fizeram por mim. Ele não precisava de me pôr a jogar e fê-lo. Fê-lo por mim.»

Dos marines aos Hurricanes

Desde adolescente que Jorge Alves tentou vingar no hóquei no gelo. Na década de 1990, jogou no high school, em Massachussets, estado onde os seus pais ainda vivem, quando ainda tirava o curso de desporto, que um dia promete que vai terminar. Serviu nos fuzileiros durante quatro anos (esteve seis meses numa base americana no Japão) e quando voltou à vida civil, em 2001, voltou a tentar a sua sorte, primeiro na equipa universitária de North Carolina State, depois nas minor leagues. Sem grande sucesso. Entre 2002 e 2007 fez nove jogos e representou sete equipas.

Continuou a trabalhar como eletricista, emprego que arranjou na empresa da mulher, mas o apelo do hóquei no gelo nunca cessou e em 2012 ofereceu-se para colaborar gratuitamente com os Carolina Hurricanes, equipa da profissionalíssima NHL (campeã em 2006) sediada em Raleigh (Carolina do Norte, EUA).

«Ofereci-me para trabalhar: limpava o balneário, tratava das lâminas das botas dos jogadores... O que eu queria era estar perto dos profissionais e acabei por ser contratado como técnico de equipamentos. Além disso, sempre que era preciso ia à baliza nos treinos», explica Jorge Alves, cuja paixão pelo hóquei no gelo vem do pai.

Salvo por uma bananeira na visita a Portugal

Francisco e Lurdes, emigrantes madeirenses, trocaram a Venezuela pelos Estados Unidos quando já tinham dois filhos e pouco tempo antes de Jorge e do seu irmão gémeo nascerem.

Radicaram-se em Stoughton, cidade nos arredores de Boston (Massachusetts) e Francisco tornou-se fã do hóquei, da NHL, e em particular da equipa da região, os Bruins, para desespero dos filhos que ficavam sem controlo sobre a única televisão lá de casa.

«Eu e os meus irmãos não gostávamos daquilo, mas com o tempo, à medida que o nosso pai vibrava e nos explicava o jogo, fomos começando a gostar e a praticar. Em adolescente e comecei na escola, porque era o único sítio onde não se pagava para jogar. Sonhava em ser profissional, mas o meu pai sempre dizia que o importante era arranjar um emprego», conta Jorge Alves, que com o pai ganhou o entusiasmo pelo hóquei e com a mãe aprendeu o apego à religião. O exemplo de vida e o amor a Portugal, esses, herdou de ambos.

«Tenho dois filhos: um rapaz de 6 de uma rapariga de 9. Ainda só falam ainda inglês, mas a primeira coisa que lhes ensinei foi a rezar em português, tal como a minha mãe sempre me ensinou e faço ainda hoje. Tenho uma tatuagem no meu braço a dizer “Graças a Deus”, em português, e o escudo de Portugal no ombro.»

A ligação de Jorge Alves às suas raízes tem ainda uma passagem pela Ilha da Madeira, numa visita com a família quando era criança. Da estada guarda uma má recordação: «Tive um acidente de moto com o meu irmão mais velho, caí de uma ribanceira e aterrei de costas numa bananeira. Podia ter morrido!»

Não voltou a Portugal, mas desde miúdo que torce pela seleção portuguesa de futebol – «Joguei soccer nos marines, até porque não havia como jogar hóquei no gelo» – e recentemente, conta, através do seu pai descobriu o gabarito da seleção de hóquei em patins.

T-shirts à venda para a caridade

A simplicidade no discurso e a humildade do seu exemplo marcam a conversa do MAISFUTEBOL com este norte-americano de sangue luso, que pede para lhe enviarmos o link do artigo para mostrar aos pais (claro, Jorge, segue por e-mail).

Francisco e Lurdes querem ler em português o feito do filho, que nos últimos dias tem sido notícia do lado de lá do Atlântico pela sua história incrível, quase irrepetível, já que o Carolina Hurricanes contrataram entretanto mais um guarda-redes e Jorge voltou à sua função de roupeiro.

«“Quando vais jogar outra vez?”, perguntam-me amigos e conhecidos. “A lua e as estrelas têm de voltar a alinhar-se para isso acontecer de novo”, respondo.» A verdade é que a sua história impressionou de tal forma os fãs que na loja dos Hurricanes vendem-se camisolas com o nome Alves e a jersey #40. Fui informado que, como existe muita procura dos adeptos, o clube vai fazer uma t-shirt igual à camisola de jogo com o meu nome também, cujas receitas vão reverter para instituições de caridade.»

Jorge Alves voltou a ser roupeiro, mas reviverá este seu sonho até ao resto dos seus dias e explica porquê em jeito de despedida: «Ninguém vai perguntar quando, por quanto tempo ou porquê… Até ao fim da vida poderei dizer: “Eu joguei na NHL!”»