Até onde pode ir o processo de controlo comportamental de um clube de futebol sobre os seus atletas profissionais?

É aceitável a intromissão voyeurista da entidade patronal nos períodos de descanso do funcionário?

Estas foram duas das questões que motivaram Jerry Silva a avançar para o livro O Futebol e a Monitorização do Sono – O Jogador e a proteção de dados pessoais [edição Mediapromo].

O tema, por ser novo e levantar questões relevantes, mereceu a atenção do Maisfutebol.

Jerry Silva, figura maior do Direito do Desporto no nosso país e juiz-árbitro do Tribunal Arbitral do Desporto, sentiu a necessidade de descodificar esta norma que se estabeleceu há cerca de dois anos no futebol nacional.

«O dr. João Ribeiro, fisiologista do Sp. Braga e meu professor no Mestrado de Alto Rendimento, abordou a questão da monitorização do sono num futebolista numa aula. E questionei, logo ali, esse ato tão simples e que não me pareceu assim tão linear. Trocámos algumas impressões e o tema ficou-me», explica Jerry Silva, preocupado sobretudo com a extirpação da privacidade individual.

«Fiz uma pós-graduação em Direito à Proteção de Dados Pessoais e escolhi esse tema. Tinha esse diálogo com o meu professor, tinha já escrito um artigo sobre isso numa revista e decidi avançar. Senti que havia uma visão simplista sobre tudo o que envolvia esta monitorização.»

De uma forma prática, essa monitorização explica-se em poucas palavras: o futebolista recebe um aparelho fornecido pelo clube, com o fim de medir a qualidade e a quantidade de horas de sono, seja em dias de competição, seja em dias de descanso.

O que podia ser apenas mais uma ferramenta de trabalho pode, enfim, ser também um abuso do poder patronal, no entender de Jerry Silva.

«Esta monitorização é um meio ou um fim? É sigilo ou voyeurismo? Não estamos a devassar a vida privada? Como vamos conciliar isso do ponto de vista do sigilo profissional? Que dados são recolhidos? Um recente estudo de uma universidade de Alicante indica que esta monitorização permite perceber se nos levantamos para ir à casa de banho ou se estamos a dormir sozinhos», aponta o causídico, ele próprio um antigo praticante, como veremos adiante.

«O jogador é, antes de tudo, homem. Não quero assistir a uma sociedade onde se vive uma escravatura assalariada. ‘Ah o jogador ganha 100 mil euros e por isso tem de…’. Não é assim. O jogador pode ganhar isso porque o mercado o permite. Por esse ponto de vista, por auferir um salário alto, tem de estar disponível para tudo, até para ser mutilado. Não pode ser assim, não aceito. É um absurdo.»

A conclusão, devidamente aprofundada e sustentada na obra recentemente editada, é forte: «Legalidade ou ilegalidade? No contexto atual eu pendo claramente para a ilegalidade.»

O exemplo do futebolista «violentamente apaixonado»

Crescemos a escutar os conselhos maternos, a educar o ‘deitar cedo para cedo erguer’, a ajustar o nosso relógio biológico para as 7/8 horas de bom sono.

Tudo isso é do senso comum e replicável no mundo do futebol profissional. A preocupação e a investigação de Jerry Silva configuram, porém, um novo paradigma na confrontação entre direitos e deveres. Mesmo que, para isso, haja algum termo de consentimento assinado pelas duas partes.

«O jogador presta o seu consentimento em que termos e condições? Um jogador que recusa esse consentimento que consequências terá dentro da equipa? Em igualdade de circunstâncias com outro colega, que assentiu, será preterido», prossegue Jerry Silva, avançando com mais um exemplo prático para sublinhar o problema legal e emocional que esta monitorização pode evocar.

«Este exemplo está no meu livro. Um futebolista que esteja violentamente apaixonado, por que terá a obrigação de facultar esses dados ao clube no seu dia de folga? Essas pessoas ficarão a saber tudo o que fez, quando não têm esse direito.»

Esta monitorização do sono, feita através de um aparelho ajustado ao corpo, é de «prática comum e recorrente» em Portugal. «FC Porto, Benfica, Sporting, Sp. Braga e Vitória de Guimarães, pelo menos esses, fazem-no. É uma coisa recente, com dois anos, e surgiu porque o futebol profissional caminha perigosamente para a maximização.»

«O ‘necessário’ tem de ser visto de uma forma restrita e proporcional. Não pode ser intrusivo», considera Jerry Silva, apelando sempre ao bom senso.

«Não há outro conjunto de instrumentos que nos permita aferir se o futebolista está em boas condições físicas? O futebolista tem a obrigação e o interesse, até porque muitas vezes o contrato é feito por objetivos.»

«A tecnologia vai ao limite, é intrusiva», adverte o jurista e advogado nascido em Angola e adaptado por Vila Nova de Gaia. «É possível saber se estamos a ler um livro ou na casa de banho. Isto é uma castração. Onde ficou o princípio de boa fé ou o lema ‘máxima liberdade, máxima responsabilidade’? A atmosfera vigente é de desconfiança.»

Apesar do peso que este livro trará para esta troca de argumentos, Jerry Silva acredita que a exigência da alta competição levará a melhor. «A tendência é a disseminação. O futebolista profissional de elite está no limite.»

O futebolista descansa o suficiente ou não? O clube pode descobrir a resposta, mas sem espreitar pelo buraco da fechadura.

O Coimbrões foi a segunda casa de Jerry Silva durante 12 anos

12 anos nos pelados da AF Porto com a camisola do Coimbrões

O futebol faz parte da vida de Jerry Silva desde sempre. Antes de abraçar a advocacia e os gabinetes da Lei, o atual Perito da Comissão de Arbitragem para a transferência de jogadores da FPF foi um futebolista prometedor.

«Tenho o futebol no ADN. Sou primo do Álvaro Magalhães, antigo jogador do Benfica e da seleção, e joguei 12 anos no Coimbrões, até aos 22. Fui vice-presidente do clube e o primeiro treinador de futsal nos seniores. Adoro futebol e ainda há pouco tempo treinei o histórico Vila, o Milan de Gaia.» 

O percurso profissional é riquíssimo – Mestrado em Direito do Desporto, Pós-Graduação em Metodologia do Treino Desportivo, Pós-Graduação em Direito à Proteção de Dados Pessoais, Juiz-Árbitro do TAD, diploma de Mérito do Comité Olímpico Internacional -, mas nada se compara às histórias vividas nos pelados da AF Porto.

«Não me esqueço do dia em que levei com um guarda-chuva no campo do Senhora da Hora e só acordei em casa. Custou-me muito e só deixei o futebol numa fase em que comecei a ter várias roturas musculares. Os tratamentos levavam-me o pouco que ganhava a jogar.»

Jerry Silva teve a possibilidade de ir treinar ao Sporting nos juvenis e à Académica nos juniores, mas o seu pai foi bastante claro: «‘Isso nem é assunto, ou estudas ou trabalhas’.»

«Acredito que esta ligação prática ao fenómeno fez de mim um profissional diferente. As pessoas não imaginem o que é trabalhar no futebol distrital.»