O céu está escuro e a chuva cai incessantemente.

Mas aqueles pingos soam a paz e não assustam Egor.

Mesmo que seja um céu desconhecido. Mesmo que não se veja um só raio de sol.

É uma questão de tempo.

Porque há menos de uma semana, era do céu que sempre conhecera que Egor tinha medo.

Há vários dias que as nuvens cinzentas de Kiev se tinham tornado negras. Soavam a ameaça.

Parecia uma questão de tempo.

Nem o teto da casa onde o menino de 10 anos morava com a mãe e a irmã transmitia segurança.

Quanto mais o céu.

Agora é diferente. O medo ainda não foi esquecido. O som das bombas que nenhuma criança devia ouvir ainda ecoa na memória de Egor. Ainda o assustam quando pensa nelas.

Talvez seja uma questão de tempo.

Mas já consegue sorrir. Tem coragem até para sonhar!

Como quando lhe mostraram a vista que tem do novo quarto.

«UAU!! Um campo de futebol! Posso ir brincar para lá!?»

E o «não» que ouviu da mãe não lhe soou a definitivo.

O relvado está mesmo ali! A umas escadas de distância.

Ele sabe que é uma questão de tempo.

Todas as crianças sabem que os sonhos são uma questão de tempo. Mesmo aquelas que tiveram de fugir de uma guerra que não entendem. Que não podem entender.

E aquele quarto, um camarote do Estádio Dr. Magalhães Pessoa, em Leiria, deixa Egor a sonhar todas as noites. E todos os dias. Assim que acorda a e persiana do Estádio da Esperança se abre.

«O meu coração ficou na Ucrânia, mas agora vejo o meu filho a brincar»

Egor, a mãe Olga, de 35 anos, a irmã Maria, de14, e a cadela Linda foram dos primeiros ucranianos a chegar ao improvisado centro de acolhimento que a autarquia de Leiria criou no estádio municipal, de forma a dar uma resposta rápida à crise humanitária que resultou da invasão da Rússia à Ucrânia.

Neste momento, são 54 as camas disponíveis em quartos para duas, três ou quatro pessoas -, mas Carlos Palheira, vereador do Desporto da autarquia leiriense, garante ao Maisfutebol que existe a possibilidade de aumentar a capacidade, caso seja necessário receber mais gente.

A adaptação, contudo, não se ficou pelos camarotes. No amplo hall do piso 1 do estádio foi improvisada uma cozinha, mesas para comer, um espaço com cadeirões para conviver e ainda um outro onde as crianças podem brincar.

É nesse espaço que Egor mostra à mãe que as feridas da fuga desesperada de Kiev vão sarar.

É uma questão de tempo.

«Agora sinto-me mais tranquila, mas o meu coração ficou em Kiev. Tenho lá a minha mãe, o meu pai e a minha avó. Além da minha casa, que não sei se já foi destruída. Tenho muito medo que isso aconteça», começa por dizer.

«Aquilo que vivemos foi horrível. O som dos aviões, das sirenes, das bombas a cair muito perto. Não sou capaz de esquecer aquilo que vi. Muito menos os gritos que ouvi de quem fugia», acrescenta numa pausa, para mudar imediatamente o tom das palavras.

«Agora estou aqui em Portugal e parece outro mundo. Vejo o meu filho a brincar e isso deixa o meu coração mais calmo», suspira, ainda que as palavras fossem dispensáveis perante o olhar embevecido para o filho.

É que a poucos metros dali, Egor treina uns movimentos de judo com os filhos de Viktoria.

É Viktoria, há 20 anos a morar em Leiria, que nos ajuda na tradução. E foi também ela que contribuiu muito para a mudança de estado de espírito do pequeno Egor. E da mãe.

«Soube que na Ucrânia ele jogava futebol e fazia judo e como os meus filhos também praticam judo, levei-o ao treino deles», conta-nos.

«Ele adorou e a mãe ficou toda contente quando lhe perguntei se o podia levar. Disse que era uma oportunidade para se divertir e esquecer aquilo que se passou nos últimos dias», realça.

Ajudar quem chega já que não se pode proteger quem teve de lá ficar

Viktoria é apenas uma das pessoas que nos últimos dias – e nos próximos, certamente – se disponibilizou para ajudar no que fosse preciso.

No concelho de Leiria, a comunidade ucraniana é constituída por cerca de 1.000 pessoas. E são várias as centenas que se têm mobilizado para ajudar. Em tudo.

Desde a preparação do espaço, à tradução, e até a servir de motorista para ir buscar pessoas à fronteira da Polónia com a Ucrânia.

E depois, há Eduard Nahornyak e Roman Bodnarskyy.

Exatamente no camarote ao lado daquele onde vivem os sonhos do pequeno Egor e descansam as angústias de Olga, trabalham o diretor comercial e o administrativo da U. Leiria.

O clube que vai disputar a fase de subia à II Liga partilha o espaço, onde está provisoriamente, com as cerca de duas dezenas de pessoas que encontraram no estádio o seu abrigo.

E que jeito têm dado Eduard, de 29 anos, e Roman, de 30, aos seus compatriotas.

Há 15 e 17 anos, respetivamente, em Portugal, os dois funcionários da U. Leiria têm sido fundamentais na comunicação. Mas têm ajudado em tudo e mais alguma coisa.

«Eu até já andei a carregar as carrinhas com os bens que foram enviados para a Ucrânia», sorri Eduard com a mesma calma com que confirma que tem o pai e o irmão numa cidade tomada pelas tropas russas.

Eduard é diretor comercial da U. Leiria

«Nós somos de Kherson, perto da Crimeia, e essa foi a primeira cidade oficialmente tomada pelos russos. Mas o meu pai e o meu irmão estão bem, não estão a combater», ressalva.

Ainda assim, não será fácil neste momento encontrar ucranianos que não conheçam alguém que está a combater.

Roman, por exemplo, tem dois primos, ambos militares, na zona de Donetsk. Aquela onde desde 2014 se vive um conflito constante.

«O resto da minha família está quase toda em Lviv. Tios e primos, mas duas primas minhas já saíram da cidade para a Polónia porque têm dois cachopos e sentem-se mais seguras lá», revela.

Perante o cenário relatado, perguntamos se Roman se sente aliviado por se ter mudado para Portugal quando era adolescente, ‘escapando’ desta guerra que lhe invadiu o país quase das décadas depois. A resposta é desarmante.

«Não me sinto nada aliviado. É um stress enorme. Desde que a guerra começou tenho de tomar comprimidos para conseguir dormir», confessa.

Será uma questão de tempo?

Em Portugal há 17 anos, Roman confessa que tem tido dificuldades em dormir pelo que se passa no seu país onde tem vários familiares

Apesar de admitirem que os últimos dias têm sido de uma agitação incomum, os dois funcionários da U. Leiria desvalorizam o que têm feito pelos compatriotas que acabam de chegar.

«Fazemos o que podemos. Mas não é nada de mais. Apenas tentamos que estas pessoas, que passaram tanto, consigam sentir que aqui está tudo bem», justifica Roman.

Abraços envoltos em lágrimas

Depois da tarde passada no estádio de Leiria, o Maisfutebol assiste à chegada de uma comitiva de mais 21 pessoas, 13 das quais para se instalarem também no Estádio da Esperaça.

Há um abraço amigo à espera de cada uma daquelas pessoas.

«Todos os que chegam foram sinalizados e têm alguém que conhecem em Leiria para lhes facilitar a adaptação», explicara-nos Carlos Palheira à tarde. E isso é fácil de perceber.

Há lágrimas num abraço. E noutro. E em mais um.

Lágrimas e abraços.

E só depois o esboço de alguns sorrisos. Sorrisos de alívio. Mas sorrisos.

E há também um certamente inocente «Never back» escrito a amarelo na mochila de uma das crianças que chega.

Uma criança que deixou casa e família para trás. Mas que está prestes a descobrir que pode voltar a sonhar. Até através da janela do quarto.

Como fez Egor. 

Que seja só uma questão de tempo.